Ao espírito das plantas





Senti-me ontem em um misto estado de deleite e humilde agradecimento. Aqui nesse pedaço de terra em que vivo, estamos findando um período longo de estiagem, onde fomos constantemente acompanhados de muito sol, calor e seca, período em que todos nós, animais e vegetais sentimos a força de uma estação de purificação da natureza. Somado a isso temos a insensatez do homem em sus constante devastação de seu habitat, com as queimadas, somando-se as adversidades naturais, tornando um período difícil se tornar insuportável por todos. Quantas e quantas foram as vezes em que me vi regando as plantas do jardim da casa que estou, enquanto via os vizinhos ateando fogo em suas folhas e galhas secas, poupando-se do trabalho pequeno de juntar as folhas e conseqüentemente disseminando a destruição e a dor em um período de natural expiação da natureza.

Resignei-me durante esse tempo apenas a ajudar o pouco que eu podia, e que me cabia, a dar a minha parcela e cuidar como um amigo das poucas plantas que me cercavam. Regar, conversar, cuidar e servir, sabendo que não haveriam retribuições para o ato, fazendo por fazer, sem recompensas e imaginado que sem gratidão.

Então durante esses dias, quando já somavam-se mais de uma centena de dias sem chuvas, que veio o presente. Lembro o dia que ela chegou como se fosse hoje, o vento leste era galopado por pesadas núvens, mas o vento era forte e não arquejava, era o mesmo vento que durante a seca me acompanhou que estava ali trazendo o prenúncio das mudanças. Lembro-me de ter dado boas vindas ao Espírito da Tempestade, eu já havia visto a chuva que chegaria em meus sonhos, ela estava longe, lembro de ter tentado buscá-la, pedindo a sua presença na nossa terra castigada, vi que ela viria e ela chegou, não que fosse novidade, pois ela um dia chegaria, independente de qualquer chamado.

Quando a chuva chegou, juntei-me as amigas plantas, pisei na terra fira e molhada pela água da chuva, desnudo senti as primeiras gotas de água, fechei o meu olho e me misturei a tudo mais, senti a felicidade das plantas, da terra e do vento pela visita da amiga chuva que há muito não nos visitava. Vi o fogo queimando os campos e a sua felicidade ao ter seu fulgor acalmado pelas águas, não havia como descrever o sentimento que me invadia. Agradeci em voz alta, como um louco comecei a dançar e a cantar para a chuva que caia uma canção infantil que aprendi com minha filha sobre a chuva, o prazer infinito gerado por aquela chuva me lavou de toda tristeza da destruição que eu via os irmãos homens fazerem a natureza e que me envergonhava do destino seguido pelo nosso povo. Tentei em vão narrar a felicidade daquele dia, como tento hoje, a alguns amigos que se riram de minha infantilidade ao ovacionar fato “tão banal e comum” como me diziam, corando ainda que “um homem deste tamanho não deveria dançar e cantar na chuva, que papel...”, não me contive e me ri com eles, mal sabendo os amigos que me ria deles e da sua torpeza, por achar que homem qualquer fosse mais do que a magia da natureza.

Passaram-se os dias, minha obrigação já findada de cuidar de minhas amigas plantas. Lembro-me que cheguei ainda ontem cansado, rodeado e inundado por futilidades e banalidades quando recebi o mais magnífico dos presentes que poderia um homem ganhar. Dentre as diversas plantas que compartilham o meu espaço, todas já frondosas e restabelecidas pelas chuvas que estão chegando, fui presenteado por um  inebriante perfume que me arrebatou, o perfume de uma Dama da noite. Fui inundado, senti-me entorpecido, quase que anestesiado pelo perfume da bela dama, sentia o meu corpo e minha pele formigando, uma energia me chamava para junto delas. Lembro que chamei ainda minha esposa para compartilhar o momento, mas ela nada sentia, além de um doce cheiro. Sentei-me debaixo da Dama da noite, não sem antes acariciá-la e agradecê-la pelo presente, então que senti o seu agradecimento, uma onda de energia me entorpeceu, senti um sentimento indescritível de gratidão e de amizade, sentei-me e deixei que as sensações de agrado e relaxamento me levassem. A noite estava nublada e úmida e o cheiro da dama me entorpeceu por completo, logo que consegui silenciar o meu diálogo. Meus braços pesaram e minhas pernas desabaram sobre seu próprio peso, minha cabeça pesou e apoiei-a na cadeira que eu sentava. Meus olhos então ficaram pesados e fora de foco, eu contemplava uma árvore, ou ela me contemplava, pois essa era a real impressão que eu tinha na hora.

Comecei então a entrar em um estado de sonho, os meus olhos abriam-se e fechavam-se, as imagens misturavam-se, entre sonhar e a atenção cotidiana. Meu coração se acelerou bruscamente quando ouvi a voz de uma mulher mandando que eu me acalmasse. Vi a energia da árvore como uma áurea de luz crescendo ao céu e então percebi que já não era escuro como quando eu sentei ali, vi que não passavam pessoas pela rua, não haviam sons, minha esposa estava parada como se dormisse um sono, o tempo parecia estar suspenso, nem mesmo eu conseguia me mecher. O céu estava como no crepúsculo, já mais claro de um jeito diferente, com uma tonalidade cinzenta. A luz da árvore irradiava pelo céu voltei-me então para os galhos e flores da árvore quando me deparei com algo indescritível. Os galhos verdes tinham duas propriedades, pareciam brilhar de alguma forma, mas subitamente viravam massas escuras que se moviam a uma velocidade incrível. Sentia os blocos de negrume, pareciam poder ser sentidos por mim, eu os sentia como flocos de algodão macios. Meu corpo então anestesiou-se por completo, um vento soprou em mim, parecia a minha volta, eu soube então que meu corpo de sonho estava se desprendendo de mim. O vento me sacudia, bem como as massas negras eram sacudidas pela minha visão. Arrepios seguiam por todo meu corpo finalizando na cabeça, onde formou-se uma coceira bem na minha moleira, senti que algo muito grande seria revelado para mim. Consegui então focalizar na região do topo de minha cabeça e aumentei a frequência dos arrepios, foi quando um sentimento de apreensão me abarcou, olhei para árvore e vi ela como um negrume imenso, um sombra saía de dentro da luz da árvore, me senti oprimido, um vento forte bateu e senti que me completou novamente. Levantei de um salto da cadeira, peguei no braço de minha esposa e entrei para dentro da casa sem olhar para trás, quase que mecanicamente.

Dormi uma noite tranqüila, sem sonhos, sem medo e nem felicidade, mas fui acompanhado de um sentimento de intensa tristeza e isolamento, que quese apagou a lembrança da experiência que tive. Acordei com um sentimento intenso hoje de gratidão pela mostra da eternidade na simplicidade do agradecimento das plantas do jardim do local que vivo. Agradeço a elas aqui, com humildade e ao Espírito das Plantas por ter me proporcionado a experiência, me sinto feliz de dividir o caminho com guerreiras tão formidáveis como elas, espero um dia conseguir quiçá ter uma parcela da consciência e conexão que elas têm com o espírito e com o mundo que vivemos e o universo que nos cerca.

Aos caminhantes, guerreiros, divido a experiência e o amor as irmãs plantas que podem ser excepcionais guias nesse nosso caminho ao infinito.

Comentários

  1. grande enio, desculpe a minha aldacia em lhe falar isso, da próxima vez que seu corpo sonhador soprar, em ocasião semelhante vc pode pedir para o nagual da planta o levar a onde vc determinar.
    experimente,
    estando onde vc quis estar com seu corpo sonhador vc ordena seu corpo que ficou sentado ou deitado a vir.
    venha.

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  2. Obrigado, vou tentar, mas foi uma experiência uma pouco nova para mim, estou ainda em um processo de aprendizagem, estou engatinhando, divido a minha complexidade no caminho do aprender. Obrigado Cleonocy pela dica, tentarei na próxima vez.

    Intento

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  3. Tatére (olá) guerreiro ... profunda experiência que lhe trouxe mais um nectar dessa "simbiose" planta/homem ...É claro pra mim como tens afinidade ou elos estreitos com os seres plantas e todo esse aprendizado podemos trocar no sonhar.
    Sinto afinidades análogas, caro, guerreiro!

    Intento!

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  4. Mais uma gota desse oceano anônimo, mas o importante é nos mantermos caminhando. As plantas são participantes magistrais nesse meu processo de crescimento e poderiam ser também do crescimento da humanidade. Sabes do que falo guerreiro anônimo, pois como disse, tem a mesma afinidade.

    Intento e obrigado pela visita e mensagem.

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