Uma jornada ao centro do universo




Banhado pela tempestade daquele dia me vi envolto nas magistrais forças da natureza. A irmã tempestade mais uma vez me mostrava a sua graça. Fechei os olhos e comecei a entoar um canto antigo que eu havia aprendido há tempos atrás em um encontro do a Ayahuasca. A natureza parecia me responder ao meu chamado, via o vento enfurecido, fazendo as águas da chuva dançar, as árvores bailavam ao som do vento, agradecidas pela benção do Espírito molhando o chão quente e seco do serrado. Eu me sentia parte daquilo tudo, parte de cada gota que caia, me sentia galopando no vento, passando por entre raios, assoitado pelo barulho dos trovões. Ali acontecia a mais profunda das meditações, me equilibrava e me sentia como tudo que me cercava, parte de tudo, sentia-me abrigado pela Terra, ouvia a voz do espírito tão alta quanto os trovões, o vento bailava em minha frente, tomando forma pela água que ele levava. Tudo era tão simples ali, depois de tantas e tantas visões vi um pouco mais claramente a verdade inexorável da vida, tudo é um, tudo é energia, tudo vem e vai para a mesma origem, o Espírito cruzava a minha frente para me lembrar de algo que ali se revelou.

Eu estava em estado de consciência intensificada, tinha recém acordado de uma noite ritual em companhia da Ahayuasca. Haviam se passado dias de descobertas, de profundos sonhos e visões e o chamado de minha amiga da Natureza, ela, como eu me acostumara, me convidava agora em sonhos para a sua companhia, com o tempo comecei a aprender a identificá-los. Ela então me havia mostrado em sua companhia a fineza do deslocamento do ponto de aglutinação. Imediatamente senti meu corpo pesar e minha mente calar. Suei e fiquei ofegante durante um tempo e depois meu corpo se acalmou, adquiriu um frio e estado conhecido quando há um deslocamento do ponto de aglutinação. Mas o que aconteceu foi um pouco diferente dessa vez.

Havia algum tempo que eu via uma certa pessoa em meus estados de sonho meditativo, eu sabia que não era de todo uma pessoa, era um ser inorgânico, ele era pequeno, as vezes olhava para mim, outras eu o via caminhando distante. Ele era pequeno da forma que eu o via, suas feições lembravam a de um homem, mas meu corpo rejeitava a sua descrição como sendo de um homem. Então que guiado pelo silêncio da planta de poder, consegui chegar até onde ele estava. Intentei em meu estado de silêncio ir aos confins do universo, me vi passando por mundos a fio. Queria entender a viajem que eu estava fazendo, na verdade queria conseguir explicar as visões, eram mundos que eu senti como sensações corporais, outros eu via como um negrume profundo e denso, onde um sol negro brilhava no céu, como se isso fosse possível. Passei por um mundo que parecia ser um emaranhado de campos de energia macios ao toque, sentia-os como uma agradável sensação corporal, um labirinto de sensações agradáveis e penetrantes, parecia de um branco cálido, mas o branco não era cor, era  sensação física pura. Passei por mundos que não consegui distinguir algo que possa aqui descrever, seres estranhos, formas geométricas de luz, cores que pareciam luz, sem uma descrição correta de cima, baixo, lado. No todo foram sete mundos distintos, sentia algo em meu corpo, ou na sua periferia se movendo, uma energia que se movia. Quando eu tentava entender ou me mover, ou partir algo em meu umbigo, um misto de interno e externo queimava como uma cólica, uma dor profunda mas agradável. Pedi, intentei para ir mais profundamente no universo e algo aconteceu onde pareceu ser o limite de onde eu podia conhecer.

Ali eu estava em um lugar onde tudo eu podia ver, tinha conhecimento da existência de pelo menos três mundos com uma certeza única, além do que vivemos, sabia ainda da existência de outros que não podia ou não tinha energia para compreender. Perguntei, intentei saber que forma eu poderia ter mais energia, eu gostaria de ter mais energia e então que apareceu o aliado que tantas vezes eu via a minha frente. Eu via uma forma cinzenta, uma minhoca que parecia ser pequena, mas quando ajustei meu campo perceptivo vi que era imensa, dentro da forma eu podia ver o homem que eu sempre via, parecia um duende, um anão, meu corpo sabia que não era humano. Então ele me encostou e senti uma energia na lateral direita de minha cabeça, um formigamento estranho, localizado que parecia se estender um pouco além de meu corpo físico e então me veio uma compreensão.

O ser me falava diretamente não em palavras mas de uma forma que não sei descrever. Ele falava o seguinte:

Como temos inveja de vocês, não no sentido que você possa imaginar. São infinitamente mais providos de energia do que qualquer energia que eu consiga compreender no universo e infinitamente mais burros. Venho vivendo em seu tempo, em seu mundo já faz muito tentando compreender e não consigo, mesmo tendo uma consciência infinitamente maior que a de sua raça. Olhe para um dia chuvoso, onde vespas correm para as luminárias, assim são vocês atraindo as mais diversas formas do universo, formas que dariam de tudo para ter a energia que vocês tem, seres que vem só para contemplar a sua energia e vocês nem sequer podem ver. Vou te levar a um lugar além da compreensão de vocês, onde toda a realidade maniqueísta de bem, mal, certo errado inexiste, onde só existem formas energéticas. Ali você verá como pode uma raça de seres tão dignamente dotados de energia podem ser domesticados por energia tão baixas e fracas, tudo em troca de uma visão confortável do mundo, confortável e míope.

Bem, não me lembro se eram essas as palavras, mas assim que me lembro, e quando vos escrevo esse relato, sinto o formigamento na área de minha cabeça que narrei. Continuando o ser me levou a um lugar que era pura escuridão, ausência de tudo, um incomensurável universo de um negrume opressor, não havia nada ali, mas eu distinguia focos de luz se deslocando para diversas áreas do universo, focos de cores, cheiros e tonalidades diferentes, como se isso fosse possível. A energia me dizia que essa era a verdade do universo, que todo o resto era apenas interpretações, de diversos tipos de seres, raças, ilusórias e ao mesmo tempo reais, aprisionantes e libertadoras, nada de verdades ou mentiras, apenas aspectos interpretativos do universo como um todo. Ainda falou que aquele que permeava tudo, a fonte, o cerne, o negrume avassalador era sentido por todos os seres no silêncio de suas energias e só esse silêncio os guiava até essa fonte, como em um piano em que diversas são as notas, com sons diferentes, mas a verdade é permeada no entremeio das notas, no silêncio único e imutável entre todas.

Meu corpo doía todo, parecia que eu passara uma maratona de exercícios físicos. Não conseguia mais focar na energia, ela me falava de um encontro que eu teria com ela em minha totalidade física, falou que ali estava apenas um aspecto de meu ser, e ainda felicitou a minha raça por essa extravagância energética, onde podemos dividir nossa energia e conseguir feitos mágicos com apenas parte dela, enquanto a outra parte descansa. Perdi a visão nessa parte do comentário desse ser, com o encontro marcado para breve.

Voltando para meu corpo, me senti atordoado, o movimento havia sido profundo e brusco. Não conseguia abrir os olhos de todo. O meu corpo parecia ter sido pisoteado, minhas omoplatas doíam, minhas costelas pareciam ter sido surradas, meu pescoço estava doendo e minhas pernas cansadas. Quando eu conseguia abrir os olhos minha vista turvava. Além disso meu estômago se revirava, corri para vomitar. Tentei incessantemente vomitar mas não conseguia, bebi água e borrifei a minha cabeça e pescoço enquanto girava os olhos em sentido horário. Consegui então vomitar e isso me aliviou. Relaxei em um estado de quase sonho, estava flutuando entre mundos, com minha energia esgotada e uma nova energia transbordando em mim.

Sai da sessão sem nada lembrar. Hoje na tempestade, banhado pelo vento recobrei, recapitulei a minha experiência com toda a densidade que ela teve. Senti o formigamento em minha cabeça, senti-o voltando com toda a fúria do vento, dos trovões e da tempestade que se fazia. Abri os braços olhando para o céu e agradecendo ao espírito que dessa vez me permitiu uma visão um pouco maior do universo, gritei os agradecimentos e fui respondido pelos trovões e vi que precisava apenas agradecer internamente, para a parte do espírito que me cabia, que era parte de mim, que era parte de tudo mais que me cercava. Me rejubilei pela descoberta e pela sua simplicidade.

Como são simples as descobertas, como é simples o espírito, como é complexa a mente e o sistema que prende o homem a ilusão dessa realidade que por tanto tempo aprisionou o homem e hoje, pelo menos para mim, começa a ruir.

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