Um passo da liberdade






A grande questão, o grande cerne da vida talvez seja o controle, a possibilidade de andarmos deliberadamente pela vida fazendo escolhas conscientes. Por um lado temos então que ter a consciência, a plenitude de saber as possibilidades que nos assistem, para além das ilusões para só então podermos tomarmos as decisões sobre a nossa caminhada. Não há nada além disso nesta caminhada, em um primeiro momento, que deva ser tema de nossas deliberações, tudo o mais se torna efêmero para além destes dois passos. Venho me questionando muito acerca deste processo que somos guiados nesta vida.
Por entre um dia e outro o que acontece na caminhada das pessoas? O que podemos ver, por simples observação é a turvação da mente com atribulações quase que automaticamente impostas a todos nós. A fórmula se repete incessantemente, é repetida de forma maçante até, de maneira que se internaliza em nossas vidas desde muito cedo. Parece que somos guiados a um só propósito que nos está matando como indivíduos e nos está consumindo como sociedade. Se por um lado temos que ter consciência sobre tudo que nos cerca, o primeiro passo que deveríamos ter nesta vida seria um aprendizado sobre como afastar o véu da ignorância que nos cerca, como afastar todas as ilusões que nos afastam da visão límpida e clara sobre a vida, e por outro lado, de posse desta visão, seria assumir a responsabilidade de viver e de fazer escolhas, diante deste caminho que temos à nossa frente.
Mas o que acontece com as nossas vidas? Primeiro somos ensinados a turvar a nossa visão e depois dissuadidos a usar o nosso poder de escolha. Ao que parece todos somos guiados por uma força conjunta, empregada por todos os nossos semelhantes de hoje e de ontem, que tende a um foco único de manutenção de um sistema social alienante a todos.
Desde muito cedo, e disso já falamos à exaustão, somos guiados em um processo de estreitamento da visão de mundo. A todo tempo somos tolhidos, desde muito cedo, a ignorar tudo que fuja do consenso criado, tudo que fuja àquilo que é designado como propício à nossa sociedade. Em todo lugar aprendemos essas lições. Tudo é catalogado estritamente em prateleiras que vão a cada dia reduzindo o escopo do que chamamos de realidade erroneamente. Na televisão, nos livros, nas conversas, no que é aceito convencionalmente como realidade e o que é catalogado como imaginação, se faz uma distinção da realidade tão ampla na qual estamos insertos permitindo que tudo se torne preto ou branco, tornando toda a infinita escala de tonalidades de cinza simplesmente como ignoradas dentro de nosso escopo de percepção. Os desenhos nos fazem crer, bem como os livros classificados como fantasias e todos os demais conjuntos, que existe um algo que é apenas parte da imaginação fantasiosa – são fadas, mundos mágicos, seres transdimensionais, percepções além dos cinco sentidos, etc – tudo que está catalogado pelo mundo neste escopo é tido como irreal, indigno de ser seguido ou considerado para a vida, a não ser como lazer, como diversão. Por outro lado há a catalogação do que pode existir, guardado em prateleiras de jornais televisivos, livros didáticos, conversas sérias de adultos, este escopo perceptivo é tudo que deve ser considerado por alguém sério, alguém que queira ser considerado digno de existência em nosso mundo social. Até a terminologia usada para cada questão é diferenciada, história é o real, estória é o irreal!
Aos poucos o âmbito de percepção de cada um de nós é reduzido, centrado apenas na solidez de nosso mundo, quando chegamos até a fase de nossa “maturidade”, quando somos tidos como adultos e ajustados à sociedade, somos empurrados em um processo de produção de decisões em massa – você não mais decide nada, você é apenas tangenciado a um pequeno escopo de escolhas dentro de um sistema reduzidíssimo de possibilidades que esta realidade lhe oferece. Tudo tem um fim e um propósito de alimentação do próprio sistema construído, grande parte de suas decisões advirão do sistema construído, se fugir disso você será cuspido para um subsistema que funciona marginalizado e será tido como excêntrico, louco, desajustado.
Neste sistema forjado o nosso corpo total sente um repulsa inicial pelo aprisionamento que estamos sendo impostos, é aquela mesma repulsa que podemos ver em vídeos quando bois são levados para o abate. Sentimos em nossa adolescência que estamos sendo podados, tolhidos, que estão sendo retirados nacos de nossa energia e que estamos entrando em uma prisão. Nesta etapa, por mais que os jovens pareçam desajustados, são eles os mais conscientes do que estar por vir, e da prisão onde serão empurrados por todo o resto de suas miseráveis vidas. Neste momento o nagual tenta avisar à criança que ainda há chance, e começa o conflito entre o ser individual e a sociedade que o cerca. Muitos, a grande maioria, cede às pressões do sistema e são “domesticados” para a visão de mundo, tem assim a sua consciência reduzida, o seu escopo de percepção tolhido e são empurrados em uma máquina vil de moer consciências que só visa a própria manutenção da sociedade como ela é. Para estes que entram neste sistema o passado rebelde será apenas uma lembranças de tempos loucos que devem ser motivo de piada e de vergonha, o nagual se torna a parte repudiada de cada um, a parte esquecida, a parte adormecida e anestesiada por comandos automatizados do mundo social. Sem a percepção do nagual, sem a sua “loucura”, o ser se torna apenas uma parte reduzida de si mesmo, dependente totalmente do próprio sistema para as suas decisões, já que não serão decisões advindas da livre vontade de quem vê o mundo claramente, serão apenas decisões ecoadas do próprio sistema que busca apenas engrenagens ajustadas para seu relógio automático de contagem do tempo em direção à morte.
Então o jovem adulto, tendo entrado no círculo interno dos alienados, começa a fazer as suas “escolhas” com um escopo reduzidíssimo de ação. Escolhe a melhor faculdade que pode, diante do que acha ser sua habilidade, ou escolhe o trabalho que lhe apraz, reduz seus sonhos a pequenos sonhos sociais: casa, carro, família, comida, passeios, iates – o sonho jocosamente demonstrado nos velhos desenhos-desejos do pica-pau. Tudo mais de possibilidade que temos se reduz a um pequeno escopo de nossas possibilidades mágicas e transcendentais, a vida se torna a mera repetição de atos do passado. O próximo passo das “escolhas” é encontrar um modelo ideal-social a seguir. Engenheiros escolhem gênios do passado para serem suas metas, escritores veem nas linhas de outros as luas próprias, místicos veem nos livros de gurus suas histórias projetadas – o mundo torna-se apenas uma repetição, um looping eterno de escolhas passadas, de comparações infundadas, um andar em círculo, a metáfora perfeita do cachorro que corre em busca do próprio rabo.
O mundo social se mantém assim, e por isso ser chamado pelos antigos de círculo de poder, pois efetivamente é um círculo concreto e não metafórico, a sociedade se torna um andar em círculo em que tudo é repetição do ontem, todas as histórias se tornam muito previsíveis, tão previsíveis como as casas modernas em bairros planejados – quartos iguais, cabelos iguais, roupas idênticas, sonhos forjados no mesmo molde. Já não somos o molde do homem, somos o molde de algo planejado para fingir ser o homem, um espectro da realidade que mata a cada dia a potencialidade mágica de ser, de estar, de transcender e de realizar.
Em cada conversa, cada filme, cada livro, cada tijolo edificado neste mundo relegamos ao esquecimento e reduzimos a energia de tudo que é mágico. Não se falam em sonhos em rodas especializadas, não se conversa sobre seres inorgânicos, seres místicos, não se ouvem os sentidos para além dos ordinários, não vemos mais o mundo mas apenas a descrição do mundo que fora construída muito atrás, em um passado, em um pacto no qual a grande maioria de nós sequer estávamos vivos.
Ao nosso redor ainda circulam homens daquele tempo do pacto, este dia vi um deles, ele me espreitava e sinto que via o mundo como tinham intentado os antigos, um mundo exatamente igual em essência àquele construído pelas descrições convencionadas em um passado bem distante. Quem hoje consegue ver uma árvore como ela é – para além da descrição de planta? Quem consegue ouvir histórias do vento para além das explicações metereológicas? Quem consegue ver o segredo contado diariamente pelas nuvens no céu? Tudo se reduz a cada dia como era o planejamento do mundo antigo, em uma prisão das mais bem forjadas no universo, uma prisão sem grades, uma prisão de percepção dentro de um sistema de redução da visão de mundo que nos deixa o suficiente apenas para sobre-viver...
Sobre o viver....
Pairamos sobre a vida, como se fôssemos peixes que só conhecessem a margem do grande mar no qual estamos sendo criados. Não nos atrevemos a viver profundamente, entregar-se a verdadeira visão. Tentem por um momento pensar no que seria largar tudo que tem – segurança financeira, projetos de trabalho, familiares, pensem por um segundo nisso tudo – respirem fundo e com olhos fechados imagine-se saindo de onde está e deixando tudo para trás, você seria capaz? Se como eu respondeu que não, entende perfeitamente que não está livre, sabe que não seria capaz de ser como Castaneda foi, como Don Juan foi, como qualquer um que acreditou em seus sonhos e que havia algo mais, como Budha, Jesus foram, sabe que está como eu amarrado e ancorado ao mundo social, e que pode até fingir a liberdade em palavras, mas não é livre.
Muito pouco de nós seria capaz sinceramente de partir hoje se o Espírito assim determinasse, muitos de nós contestamos a realidade vivida, mas também questionamos a nós mesmos acerca da possibilidade de partir em busca deste sonho maior. Muitos usaram como desculpa a deturpação usual da figura da espreita, e dirão de peito cheio que não precisa fugir deste mundo, que podem espreitar, que estão agindo como guerreiros, mas estarão mentindo – não estão, estão na verdade presos a si mesmos, presos a descrição que construíram de si, aos pequenos pactos que fizeram com o mundo social, rifando parcelas diminutas de suas próprias liberdades em nome de pequenos ganhos ou seguranças – pequenas mentiras contadas a si mesmos no decurso da vida.
Somos muito bons em mentir a nós mesmos, somos muito eficientes ao forjar histórias que aos poucos afogam as verdadeiras e únicas questões da vida. Esquecemos muito rápido as questões existenciais em nome de pequenos prazeres diários. Para onde vou cede espaço ao pequeno prazer de estar com alguém que se gosta, de onde venho cede ao ganho financeiro mais imediato, e se tudo não funcionar as pessoas embriagam-se em pequenos vícios concedidos pelo mundo social, fugindo ao “mal estar da sociedade”, pode ser um vício artístico ou mesmo mental, mas assim o fará cada um de nós nesta jornada.
Individual e coletivamente postergamos o dia de abandonar a tudo e seguir a verdade que ainda, lá no fundo, sabemos existir. Amanhã sempre é o melhor dia, pois o amanhã não exige concretude, o hoje é dado às festas dionisíacas de auto entorpecimento, tudo em nome da família, dos amigos, dos pactos já forjados...
Então que lá no leito de morte apenas saberemos o mal que nos fizemos, o mal que fizemos a todos, seremos mais um modelo perfeito a ser seguido pelos que se encontrarem com a nossa pesada história pessoal deixada, mais um ponto marcado no círculo da humanidade, na ciranda eterna que parece estarmos fadados e da qual poucos escapam. Sabiam disso os antigos e por isso faziam grupos, em pequenos grupos aprendiam a dançar outra dança, formar outro consenso, e saindo da ciranda social entravam em uma dança mágica, para só então, após libertos do círculo de poder entorpecedor da vida pudessem fazer a sua dança individual, quando tirados pela amiga morte para a sua derradeira dança.
Não há esperança, e nem por isso temos que desistir. O guerreiro sabe que nunca tivemos esperança de nada, mas mesmo assim, quase que loucamente fingem dentro de si, acreditando nessa possibilidade, que seguem uma tal de loucura controlada. Uns vão utilizá-la apenas como eufemismo para sua própria desgraça, outros saberão ser esta a fagulha que os mantém sãos no mundo de loucura, ou melhor, a fagulha que os deixa louco no mundo de sanidade absoluta.
A meta do guerreiro nunca foi vencer, se nos atermos a isso, podemos até por guinada de sorte ou misericórdia do destino vencer, a meta do guerreiro é apenas lutar, que seja um segundo por dia, para nunca esquecer daquilo que lhe foi retirado, para nunca acreditar naquilo que lhe foi ensinado, para nunca sucumbir ao que lhe é imposto. Todos os dias serão dias de batalhas internas, e todos os dias serão de derrotas, mas a vitória do guerreiro será a resistência de nunca desistir, e nesta teimosia irresoluta, quase que por obra de milagre cósmico, neste acreditar sem acreditar, nesta peleja sem fim que virá a vitória – vitória que como a vida real do guerreiro que se esconde por debaixo de panos sociais, será uma vitória solitária, aparentemente vazia, contudo mais cheia do que qualquer pequeno prazer e desejo realizado durante essa caminhada, vitória que o fará ser consumido para uma totalidade incompreensível para nós.
Olhem sempre para aquela porta aberta à sua frente, sinta aquele vento da liberdade e saiba que um dia entrará por ela e saberá, por fim, tudo aquilo que hoje apenas sente existir...

Comentários

  1. Desabafo do louco entorpecido! Saudações hermano Vento, o sacudir as folhas faz-se necessário! Intento. Gaivota

    ResponderExcluir
  2. Profundidade. Gratidão.

    ResponderExcluir
  3. "Não se falam em sonhos em rodas especializadas, não se conversa sobre seres inorgânicos, seres místicos..." Minha gratidão.Intento a todos.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Obrigado por partilhar do intento da transformação global

As mais lidas (se gostas de multidão)

A mariposa, a morte, e o espírito

O fim da linhagem de Don juan, a prisão de Castaneda e o legado das bruxas

As dúvidas na caminhada: entre ser tudo e não ser nada