Caminhos do reencontro (in memoriam)





Há muito não escrevo aqui as linhas de minhas próprias indagações sobre o mundo. As rotinas, que outrora eu desejava, e que chamei nas linhas do infinito com a minha voz e vontade, hoje parecem me soterrar em uma capa por sobre meu antigo EU. Sim, como todos e tudo eu mudei, reflexo esperado da impermanência que a tudo rege em nosso universo como regra quase que absoluta. Olho para trás com inevitável saudosismo, lembrando-me dos tempos em que, talvez por subterfúgios mneumônicos, os dias pareciam mais calmos, as coisas pareciam mais simples, e a conexão com o mundo ao meu redor parecia mais sólida. Não falo da conexão com os aspectos do mundo relacionados à nossa realidade, que outrora chamei aqui de “mundo social”, mas sim daquele mundo mais real e profundo, que se esconde por baixo dos confortáveis e pesados cobertores deste aspecto da realidade. Sim, pode ser, em uma análise retórica, que o mundo parecia mais simples e belo por consequência da natureza humana, que nos faz esquecer o que nos é de dificultoso, e exaltar as lembranças que nos fazem bem. No mundo das memórias, se a mente funciona convencionalmente, ouvi dizer que se exaltam sempre os fatores positivos, estes guardados no baú da memória acima de quaisquer eventos traumáticos.

Mas, voltando ao que antes dizia, revolvo o meu passado nos pequenos espaços de tempo entre as obrigações cotidianas que hoje me soterram, e vejo um eu mais leve. É como aquela música dos Paralamas que eu ouvia lá atrás, e hoje vejo que me servia como um manta de presságios de um futuro que hoje vivo: “Ele ganhou dinheiro, ele assinou contratos, e comprou um terno, trocou o carro, e desaprendeu, a caminhar no céu, e foi o princípio do fim...” Há um quê de dissolução em nossas vidas quando atingimos o que esperávamos? Refaço a pergunta simplificando-a: - após atingir o previsto cume, vemo-nos a descer a ladeira da vida?

Sim, respondo dizendo que cheguei aonde queria estar, olhando para trás era tudo, exatamente tudo que eu previa, mas as previsões nos mostram tão somente a parte mais superficial do futuro, e nos esquecemos de toda a densidade de conectividades da vida. Me dissera um dia, em analogia, a minha própria voz profunda: - Na vida posso lhe fazer uma analogia, se queres se um corredor de longa distância tem que abandonar o levantamento de peso, se queres ser um marombeiro tens que abandonar as longas corridas: são incompatíveis os dois objetivos. Não entendi imediatamente, mas hoje sei, vida social e vida espiritual são, de fato, incompatíveis, transitam entre energias diferentes, não é possível, ao menos a um primeiro momento, que se transite entre os dois sem consequências, e desfazimendo de parte de um em detrimento do outro.

Falo aqui de forma catártica, olho-me no espelho e alguém profundo me pergunta, por debaixo de caros ternos, odores de perfume, cabelos bem penteados: - por que me guardou aqui escondido de tua nova vida, se eu te guiei à ela?

Então, exatamente fitando aqueles olhos, que são meus e não o são, pelo menos hoje, percebi que após o cume, após atingirmos ao ponto máximo, é possível que se tenha outra solução além de descer a montanha.

Aqueles olhos, que me fitavam no espelho e agora os tenho na memória, me fizeram lembrar-me de mim, e revisando velhos textos vejo hoje, com a clareza que me permitem a obnubilação de minha própria mente fatigada pelas rotinas, que é hora do resgate de parte da promessa, àquela que eu dizia ser possível, a velha promessa de que os ternos não soterrariam o antigo eu, mas seriam apenas uma máscara para os antigos exercícios de espreita. É possível a conjugação dos tempos, é possível o resgate...

Li furiosamente os antigos textos que aqui postei, e acreditava inocentemente serem para os outros, e os descobri sendo escritos para mim. Eram cartas lançadas ao futuro, para que hoje este eu que aqui escreve as resgatasse. Eu escrevi um manual para mim mesmo, este eu profundo que me olhou no espelho com esperança, e este manual é o meu mapa para o resgate das profundezas do mundo social. Como não consegui ver antes que o que eu erguera foram escudos que hoje eu usaria para me reerguer, para me resgatar, um mapa que fará, agora vejo com relativa clareza que minha pouca energia me permite, que eu reencontre com aquele antigo eu.

O vislumbre de meus olhos a me fitar me chamaram, me apontaram os sussurros de meu outro eu e, diferentemente do que antes pensei, me fariam encontrar o meu ser duplicado, aquele que fui quando antes aqui falava, e quando encontrar saberei da segunda opção, para além de descer a montanha conquistada, é olhar para frente e ver uma montanha mais alta a ser alcançada,e em seu cume me vejo a esperar.

É hora do reencontro, sempre é hora de se reencontrar, e após chegar lá me tornarei mais uma vez duplicado, social e espiritual, na totalidade que todos temos que encontrar para seguir neste mar.

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