O VÍRUS E(É) A CURA !(?)




O céu está menos poluído, as ruas menos entupidas de gente, as mentes menos entorpecidas pelos efêmeros desejos projetados de consumismo. O foco volta-se, ainda que por um efêmero de tempo à vida. Vejo nas redes sociais, agora janelas virtuais apontadas para o outro, pessoas comentando mais sobre o céu, sobre plantas, sobre a vida, sobre seus essenciais valores. Nos trabalhos, em alguns, as pessoas começam a ver a dispensabilidade de estarem presentes, vendo que as redes sociais permitem ir para além de divagações entre amigos, entre ideologias. De mais a mais, há ainda, e presumo que sempre haverá, divergências, embates, agora um tanto quanto menos violentos, ante ao distanciamento imposto.
O tempo consigo, para alguns, parece amarga provação, conhecer-se é dolorido, ver-se sozinho consigo mesmo, redundância ao quadrado, faz com que pessoas antes desconhecidas de si comecem a conhecer-se e ver o quão é importante o diálogo consigo, agora oximoro.
Quiçá os valores todos impostos pela vida não possam ser agora, neste breve hiato de tempo, contestados. Serão valores impostos pela vida, ou impostos confiscatórios, altos por demais, que fazem apenas que a taxação confisque o mais singelo sentido de viver. Em casa, reduzidos ao mínimo necessário, algumas coisas antes distantes tornam-se presentes. Ler um livro, contemplar o céu, ouvir o canto dos pássaros, perscrutar o silêncio das ruas, mudanças de paradigmas, um ponto de inflexão, ainda que temporário, para o caótico e frenético jogo do dia-a-dia do cotidiano.
E se as pessoas começarem a ver que não precisam de tanto. E se, em suas casas, isoladas, perceberem o quão pouco precisam de fato para viver, e sim, para viver bem. Com lojas fechadas que vendem o supérfluo, quiçá seja possível perceber que o menos é mais, que ter menos e o essencial demanda, por sua vez, menos trabalho, menos correria, menos estresse, menos aglomerações, menos distanciamento entre a família, menos afastamento de si mesmo: o grande desconhecido em tempos “normais”.
E ai podemos nos questionar: - Seria o normal o anormal? Estaríamos, como sociedade, presos em uma anormalidade que quer se tornar normal, e seria o vírus, neste sentido, uma cura: amarga, intragável, mas necessária -, tal e qual o mertiolate da infância dos mais velhos na ferida aberta do tombo da diversão?
A recondução a novos paradigmas é geralmente lenta, gradual, passo a passo rumada em nossa sociedade, mas pode ser catalisada por agentes como é o vírus atual. O frenesi do vírus já propagado do consumismo se encerra agora nos quadrados das casas, apertamentos, cercadinhos todos. Mas permite, por sua vez, que pessoas que iam longe buscar diversão - em shoppings, parques, centros comercias (vejam só, só compras) -, agora possam buscar a diversão em coisas mais simples, perenes, e que, essencialmente, independem de gastos. As pessoas têm agora o privilégio de conhecer a sua vizinhança, o local aonde moram, as suas quadras, bairros, de correr, caminhar, passear. De degustar o gratuito presente divinal e perene da contemplação de um pôr do sol, de um arco-íris no céu, de uma sinfonia de pássaros nas árvores próximas.
Quiçá seja o vírus uma chance de entendermos, como coletividade, que é necessário rever a distribuição de riquezas, de trabalho, de ocupação de tempo, de modalidade de trabalho, e entendermos que o menos é o mais.
Mais trabalho é mais dinheiro, para manter maior padrão de vida, e aprisionar o trabalhador em mais trabalho. Cercado por horas de labuta em troca de dinheiro que será usado para efêmero consumo. O tempo passa, naquela vida que abandonamos no mundo antes do vírus, e não vemos. As pessoas velhas daquele velho mundo diziam:  -como perdi meu precioso tempo com isso? E quando diziam isso já era tarde demais, já se havia esvaído o néctar mais puro da juventude, restando apenas ao velho purgar lembranças de uma vida que poderia ter sido vivida. As histórias dizem que todos sabiam que não se levava desta vida objetos, dinheiro, bens todos, mas ainda assim o brilho do ouro criava a loucura imediatista por mais e mais, e consumia as horas, dias, semanas todas com trabalhos.
É tempo de entender como podemos todos mudar, e na alquimia de uma reflexão transformar o chumbo do vírus no ouro da cura para uma doença maior: o modo de vida de nossa sociedade...

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