A vida em atos




Todos que já tiveram um leve vislumbre, seja ele racional ou energético, tonal ou nagual, sobre o mundo como energia, consoante ao pensamento passado por Castaneda, entende que o mundo que percebemos é apenas uma possibilidade cognitiva compartilhada, um aspecto pequeno da realidade que, por uma conveniente convenção, aceitamos como sendo a realidade. Sabemos também que essa realidade não é única, e que qualquer mudança no ponto de aglutinação permite que percebamos aspectos diferentes do mundo e, em último caso, quando os deslocamentos são maiores, é possível aglutinar novos mundos inteiros, ou talvez, melhor dizendo, percepções absolutamente novas em termos de leis (gravitacionais, quânticas, biológicas, etc), e digo leis no sentido de um conjunto de forças que regem a realidade. Se aqui, dentro desta cognição ordinariamente compartilhada e tida como realidade temos uma lei que diz que não podemos voar, em determinado ponto diverso perceptivo atingido a lei pode ser o contrário: que voar é a regra e andar a exceção. Claro, o nível de percepção acerca desta maior amplitude da realidade, e da prisão cognitiva na qual estamos presos (ainda que voluntariamente), depende de uma série de fatores, sendo o essencial a quantidade de energia disponível e o conhecimento acessado.

Uma pessoa que detenha uma grande quantidade de energia sentirá, como algo intuído, que a realidade não é apenas a cognição compartilhada deste mundo, sentirá que existem outros seres, outras possibilidades, outras faculdades e leis de regência do Universo, mas não saberá como concatenar este conjunto intuitivo, podendo até ingressar em outros mundos empiricamente, tratando isso dentro de um dos catálogos possíveis em nosso mundo, que chamo de válvulas de escape perceptivo. Para essas pessoas, as jornadas empíricas podem ser catalogadas como transes, sonambulismo, êxtases místicos ou até uma imaginação acentuada – mas tudo não passará de uma sub-realidade para a cognição compartilhada deste mundo, para o aceito como real. Qualquer definição que tente tratar essa realidade não ordinária, ou não compartilhada, tratar-se-á, para efeitos de catalogação das prateleiras da realidade ordinária, de uma loucura, que é um termo válvula para tratar tudo que é uma percepção não aceita na convenção coletiva da cognição de nosso mundo compartilhado.

Para aquele que detém o conhecimento, que pode ser, por exemplo, os livros de Castaneda com seu conhecimento, mas não detém a energia, o conhecimento será catalogado como fantasia, como devaneio, como estória e não história, sendo assim facilmente absorvido por aquele que detém o conhecimento, mas não sabe o quão precioso o é. O mundo exerce essa pressão por sobre aquele que acessa tal tipo de conhecimento e o força a acreditar que tudo não passa de mera ilusão, impedindo que tudo que ali esteja seja tratado como uma realidade não usual e possível a todos, desde que detenham a energia necessária para tal.

Há então a necessidade de que se tenha um mínimo de energia para que, entrando em contato com o conhecimento, este se torne minimamente acessível, permitindo que, se adentrando nesta senda de conhecimento, aquele que busca possa ampliar a sua energia e ter a compreensão, tanto do lado esquerdo quanto direito de todo conhecimento. O lado direito, guiado pela razão, deve estar aberto ao conhecimento como factível, como possível, não como um devaneio, sabendo que se trata de um novo pacto cognitivo, um pacto dos feiticeiros, que ampliam as prateleiras do mundo para algo de imensuráveis proporções. Enquanto, sob a ótica do catálogo ordinário da percepção, temos diversas categorias na mesma prateleira dos descartes – loucura, devaneio, alucinação, drogadição, etc -, para o pacto cognitivo dos feiticeiros se criam novas categorias – mudança do ponto de percepção, campo de energia, voladores, aliados, etc. Com isso se permite que, confortavelmente se amplie o campo perceptivo, ainda prisioneiro de uma catalogação racional, um Tao que pode ser, ainda, descrito, mesmo que de forma incompleta. Chama-se a esta ampliação de segunda atenção.

Mas voltemos ao princípio, quem já teve um vislumbre da segunda atenção, e não extrapolaremos esse campo aqui, sabe que, quanto mais se entende que o mundo em que vivemos é uma descrição, e saber se diz tonal, e quanto mais se sente que o mundo é uma descrição, e sentir é nagual, mas se possibilita o entendimento de que tudo, absolutamente tudo que se vivencia nesta realidade é uma ilusão – dura, firme, quase inquebrantável -, que busca organizar o caos natural ao nosso redor, uma ilusão criada, inicialmente, para dar tranquilidade, e que agora se tornou, e agora quero me referir a “desde de eras”, desde o pacto dos antigos, uma prisão perceptiva, ainda que bela, confortável, suavizante, ainda uma prisão. Percebe-se, ao longo da vida das pessoas, desde o nascimento, o atingimento da maturidade social, o envelhecimento e morte, padrões aprisionantes sociais. Quando criança a liberdade é um pouco maior, mas começa-se na alfabetização, na linguagem, a primeira prisão, no momento em que se cataloga a energia percebida em prateleiras da cognição consensual do mundo, tem-se até esse aprisionamento perceptivo no texto bíblico de Gênesis 2:20, quando Deus dá a Adão a incumbência de nominar todas as coisas. Isso é reflexo material do pacto dos antigos, de quando o homem primevo mitológico, ou o molde de toda a raça humana, nominou as coisas. Nominar é fechar o sentido, é reduzir o que são as coisas em essência ao que são em aparência, e assim aprisionar o mundo real no mundo a ser percebido como coesão. Assim são chamadas as crianças, não para nominarem o mundo energético que percebem desde o nascimento, mas para decorarem o nome e a função de todas as coisas que são permitidas serem vistas. As demais, aquelas fora de catálogo, são aos poucos esquecidas, pois inominadas!

O primeiro passo então é da redução perceptiva a uma cognição compartilhada. A criança é levada a esquecer o mundo do sonhar (1/3 de sua vida), é levada a abandonar os amigos imaginários (aliados), é levada a deixar de lado as suas visitas a outros mundos (mudanças naturais do Ponto de Aglutinação), é reduzida a sua percepção à cognição compartilhada. E por isso a sociedade têm uma dificuldade extremada em tratar com pessoas com neurodiversidade, pessoas com TEA, TDH, Síndrome de Down, etc, exatamente pela dificuldade que essas pessoas detêm, em nível energético, em se adequar à cognição ordinária do mundo, por conta de peculiaridades em seu campo energético.

Após a adequação cognitiva, que se inicia na linguagem mas abrange a todo conhecimento ordinário de mundo, desde a alfabetização à escolarização, que não são nada mais do que a domesticação e criação do Homo sapiens, aquele que detém a razão ordinária como centro do seu próprio universo perceptivo, na busca simples e pura de domínio sobre o campo perceptivo ordinário que encerra parte da realidade total na realidade usual, o homem é tornado pura razão para dominar o mundo natural que o cerca, ficando preso por toda a sua vida adulta a essa ânsia por dominação, e esquecendo que é apenas um animal enjaulado em uma cadeia cognitiva, ainda que bela, e ordenhado dia após dia em sua melhor composição energética.

Após a domesticação escolar, e o preparo do Homo sapiens faber, empiricus, econopmicus e consumans, aquele pronto para o mercado produtivo, tem-se então a segunda etapa de vida, de inserção no mercado, de produção para o mundo. Contas a pagar, valores a receber, um ciclo constante voltado apenas a sustentação de um mundo ilusório, que faz com que a esmagadora maioria das pessoas se aprisionem em funções repetitivas das quais não extraem nenhum prazer, funções que os consomem dia após dia. Nesta etapa surge a conveniência da família, de se juntar a outra pessoa, também presa no ciclo de produção para o mundo, em que se gera uma ou mais vidas, que aprisionam ainda mais aquela pessoa preparada para a vida adulta. Afinal, para a manutenção do mundo, ainda que suas dificuldades, ainda que com sua devastação, ainda que com toda a problemática que envolve essa cognição compartilhada, essa construção da realidade, deve-se criar novos seres para serem como reprodutores e mantenedores do sistema tal e qual está vigente. De tempos em tempos, em raras ocasiões, nasce, dentre o meio destes todos, algumas pessoas que ousam mudar, questionar, buscar superar o modelo posto, cada vez mais raras e poucas que assumo poderem não mais existir em nossa era.

Este ciclo constante se retroalimenta, ainda aqueles que buscam o anticaminho da iluminação, ainda estes, são, em momento ou outro de sua vida adulta soterrados pela necessidade de catalogarem-se em uma das prateleiras produtivas. Quando sós ainda há esperança, após a reprodução e a chegada de filhos torna-se um trabalho quase impossível de se fazer, a reprodução, além de servir ao propósito de manutenção do mundo e a primeira atenção, serve também ao propósito de recrudescimento do agrilhoamento daquele que busca. Postergam-se os sonhos de liberdade, da busca pela verdade, tudo em nome do novo ser, parte de si mesmo, amado em seu mais profundo íntimo energético, pois parte de si.

No terceiro ato encontra-se, então, o Homo lassus, já cansado de sua extenuante jornada, aquele que já abandonou o mundo produtivo com as forças exauridas, que vive das poucas histórias realmente mágicas, e que já contempla, à sua frente, o horizonte de chegada. O que virá a ser o fim, vai intuir este ser cansado, poderia ser um novo começo, mas já chega o fim do dia, e o sol de sua vida já vai se pôr. Sem ter tido tempo, disposição, energia, não conseguirá enfrentar a noite, e irá apenas dormir o sono sem sonhos, ou o sonho de memórias de uma vida sem muita energia, sem muita vida, uma vida em que muitas vezes foi mantido tangenciado, não pela força, mas pelas contingências impostas pelos elementos escolhidos da realidade que ele mesmo sustentou e sustentará até o seu fim.

Tudo que se passa na vida em três atos, do mágico ao cansado, do grande mundo energético ao pequeno mundo catalogado, da energia da vida ao desperdício energético de uma vida, é o resumo da própria história da humanidade desde o pacto dos antigos, desde a domesticação conveniente a seres que se aproveitaram do estreitamento perceptivo treinado pelo próprio homem.

E então chega o dia da partida definitiva...

Quando, ao olhar para traz, pensamos em tudo que somos, vemos que somos nada. Nossa partida em nada alterará na ordem do universo. Tudo que juntamos para o nosso conforto dará conforto a outros, os livros que lemos serão o conhecimento de outros, as palavras que deixamos, algumas se descobrirão apenas uma cópia de palavras mais antigas, outras se mostrarão inúteis e se apagarão com o tempo. Nosso sucesso, mérito, posses se diluirão sendo distribuídos entre outros. As lembranças serão cada vez mais efêmeras até que desapareçam de vez, talvez fique o nome desconexo da verdade do que fomos, talvez nem mesmo o que achamos que éramos foi um dia verdade de todo.

Após a partida, as estações continuarão a passar, as folhas a caírem e as luas cheias a iluminarem o céu. O legado que deixamos não se sustenta a uma breve brisa do sopro do infinito tempo, em poucas centenas de anos terão esquecido todo o teu legado, e se for alguém que escreveu teu nome como marca em uma grande obra para o mundo social, será lembrado apenas em um pequeno aspecto teu, aquele mais servil, aquele que foi destinado a ser escrito nos anais dos dominadores ou com mais sorte no seleto e reduzidíssimo livro da resistência. Mas tu terás partido, enfim despido da veste humana.

Quererão antes de nossa partida nos falar que somos imortais em essência, que habitaremos o céu, que será eterna a nossa alma e que retornaremos em ciclos infinitos, mas querem apenas nos manter, até o último instante, na ilusão, fingir fingindo que teremos uma próxima chance, fingir um jeito de dizer que somos imortais.

Na verdade, só tem uma chance nesta vida, e ela está se esgotando, se esvaindo, e cada um de nós está desaparecendo e perdendo esta que é a única e verdadeira chance de ser a própria eternidade, e não há tempo para pensar, não há tempo para hesitar mas, infelizmente, para a grande maioria das pessoas, não há energia para entender tão simples fórmula de atingir a própria eternidade.

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