A fé e a montanha




Por gerações a fé em um ser apartado, criador, tal e qual o reflexo do pai e mãe, hora masculino e ora feminino, se agrega às sociedades, fazendo com que as pessoas submetam os seus destinos, as suas esperanças, as suas desgraças e fortunas a essa ideação.

A ideia do apartamento, da separação, da cisão entre cada ser humano e o universo cria essa necessidade, que se tenha o suporte da fé para que se chegue aquele ser que criou o ser mais diferente de todos: o ser humano.

Após o surgimento do ser humano, surgiram os deuses todos, cada qual em seu aspecto de suprimento da necessidade humana por explicações, característica que difere, dentre outras, o ser humano de tudo mais que há. Pensa o ser humano, em sua arrogância própria, que somente a existência de um ser superior e todo poderoso poderia criar um ser tão único como o ser humano, e por isso, na maioria das crenças, o ser divino é a imagem e semelhança do ser humano. A lógica pode até parecer diversa, por ocasião das justificativas todas, mas é fato que, carente de entender um ser supremo, todo poderoso, criador de tudo e todos, as religiões e crenças todas levam a algo em comum: a criação de deuses antropomorfizados, enquanto fingem, todas elas, que somos nós imagem e semelhança de deus, são os deuses imagem e semelhança do ser humano, o ser mais perfeito que pode se idealizar.

Pois bem, tendo sido criado, em cada geração, de cada povo, um deus, a imagem e semelhança do ser humano, ou grupo humano que o criou, surgiram então as características próprias desses deuses, e as exigências para com seus “filhos”.

Mas como os deuses são imagem e semelhança dos homens que os criaram, o que eles exigem dos seus “filhos” são apenas aquelas coisas que querem os criadores dos deuses. Uns justificam a criação por palavras divinas recebidas, muitas vezes devaneios loucos, outras má-fé pura, para domínio social, que são repassadas, geração após geração, para mantê-la na dominação. A fé não move apenas montanhas, domina a natureza, cria cidades, justifica o acaso, a desgraça, a dor, o medo, a barganha – ou se segue os ditames de deus criado à imagem e semelhança dos homens que o criou, ou será castigado, e se o segue, o pós vida será o paraíso perfeito, que reflete o desejo das massas, criado pelo grupo de criadores de deuses.

Poucas são as crenças que pregam a liberdade, e a ausência de um deus. O nagualismo, dentre elas, é o que penso que nos reúne aqui. Não há promessas no nagualismo, de absolutamente nada, talvez até se garanta mais dor aqueles despertos, aqueles que querem ver o mundo como predador, como um mundo sem piedade divina seletiva a um ser apenas, o humano. Há apenas a certeza da dificuldade e a beleza de existir, e a responsabilidade que deve ser reivindicada de cada um.

No nagualismo a águia é apenas uma metáfora para um ponto de convergência entre a vida e a morte, nada antropomorfizada, apenas um ponto de convergência de início e fim para a eternidade que é a energia que flui por tudo. Há apenas a certeza que somos, como raça, um ponto do universo em eterna mutação, de seres finitos que adquirem consciência e a perdem, em um universo que flui buscando a consciência aprimorada, não por um senhor de barba branca, ou uma mulher de vestido, ou por seres mágicos de força infinita. O universo é deus em si, e o universo somos nós – humanos, pedras, insetos, plantas, fungos, planetas, sóis, buracos negros, seres inorgânicos e orgânicos todos que compartilhamos esse agora infinito que flui e se transforma – somos pois um ponto mínimo, uma célula de uma totalidade que busca a consciência de si em cada pulsação, e nada mais, e isso basta.

Não há a quem direcionar orações, não há salvação além da autorresponsabilidade, não há demônios a nos fustigar, não há paraíso no além ou inferno, existindo apenas um inimigo, a nossa imbecil inconsciência, que deve ser a todo tempo combatida.

E não há piedade, senhores ou servos, tudo é exatamente igual, energia fluindo, ora mais consciente, ora menos consciente, em um universo em que o mais apto devora o menos apto e se transforma a todo tempo.

E a fé, e os deuses, são meras invenções de seres conscientes, criadas para nos manter, como humanidade, como gado em um pasto verdejante, de um pastor invisível que ninguém vê, mas que é gerenciado por aqueles que usam da fé para sugar a energia de milhares, dizendo a eles estarem guiando-os para a justiça e o amor de um ser supremo, e fazendo com que andem no vale da morte e da dor da inconsciência, fingindo que isso não é mal a se temer. Pastores que tratam a humanidade como gato, que vivem a sugar dessa humanidade fingindo ser o inimigo o homem do homem, ungindo a cabeça do povo com óleo da inconsciência, para transbordar o cálice da ignorância, distanciando assim do reino dos céus, que é a consciência e totalidade de si.

Comentários

  1. O ego humano se orgulhou do molde de si que criou. Existe o Grande Espírito, que está muito longe de ser um ser antropomorfizado.

    Nik,
    18/07/2024, 13:38
    in k'a'anat in wa

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  2. Exatamente, todos somos...

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