Um sincero retorno




 Revisando os livros de Castaneda, principalmente aqueles do velho ciclo, dos que Carlos é apenas um mensageiro, sinto, particularmente, aquele velho assombro que me acometeu há anos, em um primeiro momento sem nenhum contato com qualquer conhecimento, quando ainda jovem, quando peregrinava pelas noites em minha velha casa com o corpo de sonhar. Este foi, quiçá, o momento mais distante o qual consigo me lembrar de ter contato com o Espírito, ainda por meio do conhecimento silencioso, ainda por meio daquela simplicidade pela qual as crianças, longe de todos os condicionamentos sociais, conseguem perceber o mundo. Lembro-me que tudo aconteceu quando tinha meus 7-8 anos, algo assim, talvez antes talvez depois, pouco importa. Era um período em que tive hepatite, decorrente das condições sanitárias da época em escolas, bebedouros e tudo mais. 

Era uma criança franzina, em uma cidade distante, mas a hepatite me caiu como uma benção, por estranho que pareça, já que me exigia uma alimentação peculiar, lembro que regada a muito chocolate, e me permitiu umas férias em casa, em que ganhei brinquedos e tudo mais, enfim, noves fora a doença, foi para meu entendimento juvenil uma benção. Foi neste período “abençoado”, que por algum motivo comecei a vagar por aquela casa com o corpo do sonhar, peregrinando por ela com uma liberdade incomum, fazendo peripécias e rondando as ruas, como uma brincadeira, parte daquele período em que vivi.

Foi na mesma época que conheci o assombro da morte, por ocasião de uma vizinha que estava a beira da morte, segundo lembro por problemas relacionados ao sangue, não me perguntem, pois não sei, qual efetivamente era o problema. Como a casa vizinha era também um bar, daquela família, lembro da moça quando ia tomar um refresco no local, e me assustei como a juventude dela se transformara em um corpo funesto, decrépito, como se toda a sua energia tivesse sido levada, eu sentia a presença da própria morte nas vezes em que a ia visitar naquele quarto daquela casa, o assombro que aquilo me trazia, e o senso de emergência que me despertava no corpo de uma forma que não podia transformar em palavras.

Com o tempo me veio o segundo assalto do Espírito, desta vez com o conhecimento dos livros de Castaneda, era um dos primeiros, empoeirado já a época, nos idos da década de 1990, quando então senti uma avalanche por sobre mim, quando identifiquei um conhecimento escrito que se coadunava com o que eu tinha vivido em minha distante juventude. Sinto que ali, naquele espaço de tempo, um gatilho emergencial disparou, como me apontasse a uma direção e a uma busca que eu deveria seguir, e sigo até hoje em minha vida, hora com mais veemência, hora com mais timidez, mas que persiste, como uma sensação íntima de que o tempo está se esgotando: e de fato está, para todos nós.

Naquele tempo lembro de ter procurado, ainda jovem, na experiência que achava eu terem os adultos, uma explicação racional sobre como era possível termos duas vidas, dois corpos, um desperto e um sonhador. Os mistérios do sonhar, que eu tinha vivido plenamente sem explicação, na mais tenra e inocente infância, me voltavam e me pediam uma explicação racional onde, hoje sei, não existir. De fato, conversei com muitos, me aventurei nas viagens astrais, projeções, e toda sorte de conhecimento que eram muito distantes da práxis do corpo sonhador, que eu conheci profundamente e vivi, sem nenhuma explicação. Em uma das recapitulação profundas descobri que em uma das conversas tinha conhecido alguém diferente, com um campo de energia estranho, quem sabe não era um encontro com um inorgânico, destes tantos que residem entre nós e que sequer notamos, a energia dele era um vórtice verde que circulava em pulsos em uma totalidade em sentido anti-horário – e não me perguntem o que isso significa, pois foi só uma recapitulação que me mostrou algo ainda não compreendido.

Então, voltando ao princípio, revolvendo as obras de Castaneda sobre os ensinos originais de Don Juan Matus, percebi mais uma vez a complexidade de todo sistema, e mais uma vez vi que toda a complexidade se dá pela tentativa de fazer com que tenham sentido sob a ótica de nossa racionalidade. Lentamente e passo a passo vi que a nossa caminhada, sozinhos como somos, diferentemente do conhecimento do velho ciclo, vamos vencendo barreiras, andando um passo a frente e as vezes voltando três, buscando compreender este caminho, racionalizá-lo, quiçá como forma de amenizar o assombro do entendimento mais profundo, e sem palavras, de que os mistérios são de fato insondáveis, e que o desafio é grande demais para a nossa breve vida. Olhando os velhos fóruns e discussões todas, conjecturações e parlatórios, vejo como as pessoas, nesta pós-modernidade efêmera, gastam-se em teorizações e abstrativizações de um conhecimento extremamente simples, em correlações com dogmas, conceitos, teorias, todas com palavras mais rebuscadas que meu léxico reduzido e simples consegue captar, e talvez estão se deixando assim só afastar do caminho do simples, perdendo o precioso tempo que aqui temos, como o estou fazendo agora, em direção à morte.

De tudo que vejo e vi, a simplicidade do que fui outrora, e que todos fomos, vejo a fluência mais fácil do conhecimento do caminho do guerreiro quando não temos conhecimento algum sobre o mundo construído no primeiro círculo de poder, no consenso social ilusório que nos cerca. Sim, por isso já disseram que é das crianças do reino do céu, e este reino, creio, é de fato aqui.

Enquanto muitos ainda persistem lendo as obras, perscrutando o conhecimento poderoso daqueles livros maravilhosos acreditando em sistemas por demais complexos, começo a sentir, para além do pensar de minha racionalidade burra, que o simples é o caminho, que o inexplicável que aqui nunca conseguiria dizer é a fórmula, a paciência de esperar somada ao imediatismo de saber que não há tempo. 

Talvez seja o nosso próprio passado o mapa, por meio das insistentes tentativas e assaltos do Espírito, da confluência de inorgânicos em nossa vida sem sequer que os tenhamos reconhecido, dos tortuosos caminhos seguidos por impulso de um poder maior que em nós reside, das coincidências estranhas que nos acometeram sem que tenhamos percebidos, talvez seja tudo em nossa vida, de cada um de nós, o próprio caminho simples para entendermos, um caminho fragmentado como um quebra cabeças que só precisa ser reconstruído: a recapitulação. 

Este é talvez o maior segredo, silencioso e pessoal segredo, que nos pode abrir os olhos de forma simples ao que precisamos, fazendo com que, enquanto caminhamos pacientemente sabendo o que queremos, pois já despertos minimamente da necessidade deste conhecimento, consigamos ter a paciência necessária para acessar a este poder, que nada mais é do que a visão para além do véu, nada mais é que o retorno daquela visão pueril da infância, nada mais é do que o retorno a fonte e a pureza da visão, sem que abandonemos o mundo e a visão construída, necessária para que passemos por este breve hiato chamado vida.

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