A perda da forma humana

 




De todos os conhecimentos do caminho do guerreiro, um dos mais essenciais talvez é a perda da forma humana. Perder a forma humana é um exercício que talvez leve uma vida inteira, isso para a maioria das pessoas, e tem relação direta com algumas das temáticas centrais da obra, sendo elas: o movimento do ponto de aglutinação para um local específico; o acúmulo de energia; a loucura controlada.

De forma sistemática, até o limiar do que compreendi, hermeneuticamente e na prática pessoal, o conhecimento envolto na ideia de perder a forma humana detém uma intrínseca relação com alguns conhecimentos orientais relativos ao controle efetivo da identificação com o mundo.

Para o budismo existem as Quatro Nobres Verdades, parte do ensinamento do Dhamma, que é considerado para a filosofia budista como sendo o caminho da verdade. Nesta senda de conhecimento filosófico, tem-se um algo que pode ser correlacionado com os ensinamentos do nagualismo, que é o entendimento do Dahmma como algo a ser vivido e não um dogma imutável, algo para ser praticado para se “atravessar essa margem”, ou transcender as prisões humanas (eis outro paralelo possível com a perda da forma humana). Para Buda, os ensinamentos devem transcender a metafísica retórica, as especulações e se tornar prática, vivência, experimentação. Dentre os ensinamentos do Dhammma estão, como parte essencial as Quatro Nobres Verdades, quais sejam: dukkha (do sofrimento); dukkhasamudaya (da origem do sofrimento); dukkhanirodha (da cessação do sofrimento); dukkhanirodhagaminipatipada (do caminho que conduz à cessação do sofrimento).

Como se vê, as Nobres Verdades detêm como essência o sofrimento (dukkha), sendo em si uma visão filosófica basilar do budismo, representando a natureza de insatisfação na qual vive o ser humano apegado a tudo o que é condicionado, à impermanência. O sofrimento emerge do apego do homem ao ilusório e efêmero, o desejo (tanha), em sua tentativa de que tudo o que é efêmero se torne perene. A impermanência (anicca) é a causa do sofrimento, não pela sua natureza, mas pelo não entendimento de sua existência e a insistência em se apegar, se identificar, que leva ao desejo de ter o impermanente e o medo de perder quando o atinge, o que é inevitável. Este foi o entendimento que levou Buda a deixar o palácio em que vivia, a família, os filhos, e todos os componentes da boa vida vivida para busca do caminho da libertação.

Como complementação, após superada a ignorância e com o fim dos desejos chega-se ao Nibbana (Nirvana), um estado daquele que “não está sujeito à enfermidade, o imortal, não está sujeito à tristeza, não está sujeito às impurezas, a suprema segurança contra o cativeiro” (Ariyapariyesana Sutta), sendo descrito por Buda como um estado de felicidade suprema, de paz sublime, não existindo apegos um estado onde cessa-se o sofrimento. Claro, aqui fazemos um comparativo superfinal, apenas para efeito de entendimento de alguns paralelos, não falamos dos Cinco Agregados, do Caminho Óctuplo e outros conhecimento, para tanto recomendamos acessar o site https://www.acessoaoinsight.net/, que detém vasto material de estudos sobre o Budismo.

Pois bem, aparentemente a perda da forma humana, dentro do nagualismo, detém paralelos com o estado de Nirvana do Budismo, essencialmente no que se refere a superação dos desejos, a chegada em um ponto de não identificação do ser com o mundo, e a vida guiada pelos insights e não por vontade pessoal.

A forma humana é a forma com a qual estamos familiarizados e como tudo que percebemos é um produto da fixação do ponto de aglutinação na sociedade hodierna. Para Don Juan “A forma humana ou o sentimento humano é o original, talvez seja a forma mais doce de todas para nós; no entanto, existe um número incontável de formas alternativas que o aglomerado pode adotar.” (Porta para o infinito). Ou seja, perder a forma humana torna-se, neste aspecto, algo um tanto quanto simples, mas ao mesmo tempo complexo, pois demanda um deslocamento do ponto de aglutinação para um novo ponto, permitindo um rearranjo energético e, consequentemente, perceptivo, um ponto no qual não há identificação com todo o convencionado no primeiro círculo do poder, ou o mundo social.

O que se percebe é que a forma humana nos condiciona, e ao mesmo tempo gastamos uma grande quantidade de energia para mantê-la. Todos os produtos que formam o que é convencionado como percepção humana são, portanto, uma decorrência do local de estacionamento do ponto de aglutinação no ovo de luz. Dali decorrem os sentimentos convencionais: medo, apego, raiva -, ainda decorre dai a mente como a conhecemos, como tagarela e dominante, bem como a antropomorfização do mundo que nos rodeia. Don Juan disse certa ocasião que “Você ainda não perdeu sua forma humana. O mesmo sucedeu comigo. Eu antes via os aliados como pessoas; todos era índios, com caras horríveis e olhares malvados. Esperavam por mim nos lugares desertos. Eu achava que eles me perseguiam como mulher. O Nagual ria-se à grande, diante dos meus receios. Mas ainda assim eu morria de medo.”(O segundo círculo do poder) La Gorda disse algo parecido a Castaneda, citando as palavras de Don Juan “Nagual me disse que, enquanto a gente se agarra à forma humana, só pode refletir essa forma”.

Em outros pontos do livro “Segundo círculo do poder”, La Gorda narra o que acreditava ser a perda da forma humana a Castaneda, “Ela disse que a forma humana, sendo a força que é, deixou o seu corpo depois de uma grave luta interna que se manifestou com uma doença. [...] No dia em que o tive, perdi a minha forma humana. Fiquei tão fraca que por vários dias nem consegui levantar da cama, Desde aquele dia não tive a energia de ser o meu velho ser. De vez em quando tenho tentado voltar aos meus velhos hábitos, mas não tive a força de aproveitá-los como antes. Por fim desisti.”

Arrematou La Gorda no mesmo livro dizendo: “— Tudo o que dizemos — continuou ela — é um reflexo do mundo das pessoas. Antes de terminar a sua visita você há de descobrir que você fala e age desse modo porque está agarrado à forma humana, assim como os Genaros e as irmãzinhas se agarram à forma humana quando lutam para matar-se.”

No livro “O presente da águia”, um tópico é dedicado exclusivamente ao tema, sendo que mais algumas pistas são dadas sobre o que seria a perda da forma. Castaneda inicia narrando uma experiência física que seria a perda da forma humana: “[...] um dia, quando eu estava em Los Angeles, acordei de manhã cedo com uma pressão insuportável na cabeça. Não era dor de cabeça, mas um peso imenso nos ouvidos. Senti o peso nas pálpebras e no céu da boca. Sabia que estava febril, mas o calor se concentrava apenas na cabeça. Tentei me sentar. Tive a impressão que estava tendo um derrame. Minha primeira reação foi pedir ajuda, mas de alguma forma me acalmei e tentei deixar passar o medo. Depois de algum tempo a pressão na cabeça começou a diminuir, mas começou a mudar para a garganta. Lutava para respirar, engasgado e tossindo ao mesmo tempo; então a pressão moveu-se lentamente para o peito, depois para o estômago, a virilha, as pernas e os pés, até finalmente sumir.”

Narrando os sentimentos após a transformação narrou para La Gorda: “ Não importava mais o que la Gorda me fizera. Não que eu a tivesse perdoado pelo seu comportamento censurável comigo, mas era como se nunca tivesse havido traição alguma. Não havia nenhum rancor aberto ou oculto em mim por la Gorda ou por ninguém quanto àquilo. O que eu sentia não era uma indiferença negativa ou negligência ao agir; nem uma solidão desesperada ou nem ao menos o desejo de estar sozinho. Era um sentimento estranho de afastamento; uma capacidade de imergir dentro de mim mesmo por um momento e não ter pensamentos de espécie alguma. As atitudes das pessoas não mais me afetavam, pois eu não tinha mais nenhuma expectativa. Uma estranha paz tinha se tornado a força mestra da minha vida. Eu sentia que de alguma forma tinha adotado um dos conceitos da vida de guerreiro — desprendimento.”

Fazendo um paralelo com experiências conhecidas, a sensação descrita por Castaneda parece muito com os efeitos de plantas de poder como a ayahuasca, um conjunto de sensações físicas portentosas (chamadas limpezas), bem como a sensação posterior de desprendimento, de ausência de expectativa, de um quase alheamento. Quiçá a sensação seja produto do próprio deslocamento do ponto de aglutinação, e assim aparentemente o é, contudo, atingir o exato “ponto da não piedade” é possível que seja algo para além da efemeridade própria destas sensações.

 Percebe-se nas duas obras citadas acima que após as conversas de La Gorda e de Carlos sobre perderem a forma humana, há sentimentos, apegos e ainda preocupações presentes em suas ações, como se o ponto de aglutinação estivesse errático entre o local da não piedade e o local ordinário em que todos temos a sua fixação.

Uma explicação muito simples e direta sobre a forma humana se dá no livro O fogo interior, nele Don Juan discorre da seguinte forma: “ os videntes descrevem a forma humana como a força compulsória de alinhamento das emanações acesas pelo brilho da consciência, no lugar preciso em que normalmente está fixado o ponto de aglutinação do homem. É a força que nos torna pessoas. Assim, ser uma pessoa e ser compelido a aderir a essa força de alinhamento e, conseqüentemente, a aderir ao lugar exato onde ela se origina.”  O velho nagual continua e acaba por descrever a gradual mudança que é dada com a perda da forma humana, nos seguintes termos: “ Em virtude de suas atividades, em dado momento o ponto de aglutinação dos guerreiros deriva para a esquerda. É uma mudança permanente, que resulta em uma incomum sensação de indiferença, ou controle, ou mesmo de desenvoltura. Esse deslocamento do ponto de aglutinação provoca um novo alinhamento de emanações. É o começo de uma série de mudanças maiores. Os videntes chamam muito apropriadamente essa mudança inicial de perda da forma humana, porque ela marca um movimento inexorável do ponto de aglutinação para fora de sua posição original, o que resulta na perda irreversível de nossa adesão à força que nos faz sermos pessoas.”

Importante notar algumas questões essenciais nestes fragmentos, a primeira de que a fixação do ponto de aglutinação em determinado ponto é o que cria a “forma humana”, permitindo que cada pessoa detenha todos os atributos convencionais sociais (sentimentos, pensamentos, senso de responsabilidade, etc), bem como força a percepção a notar todas as coisas dentro do catálogo do mundo social, basicamente um catálogo antropomorfizado. Ainda mais, a retirada do PA do local ordinário, e o seu deslocamento para um ponto específico à esquerda, leva ao “ponto da não piedade”, ou um ponto de alheamento com as identificações convencionais humanas. A melhor forma de se narrar isso é dizendo que se trata de “rasgar o contrato do consenso humano”.

A propósito do “lugar da não piedade”, ele é descrito nas obras pela primeira vez de forma explícita no livro O poder do silêncio, ainda que antes tenha sido mencionado sem se citar a sua catalogação pelo Velho Nagual. A descrição é feita dentro de um cerne abstrato da seguinte forma: “Segundo a história, para deixar os mistérios da feitiçaria se revelarem ao homem sobre o qual estivemos conversando, foi necessário para o espírito descer sobre aquele homem. O espírito escolheu o momento quando o homem estava distraído, desprotegido e, demonstrando nenhuma piedade, o espírito deixou sua presença por si mesma mover o ponto de aglutinação do homem para uma posição específica. Esse ponto passou a ser conhecido para os feiticeiros dali por diante como o lugar da não-piedade. A implacabilidade tornou-se, desse modo, o primeiro princípio da feitiçaria.”.

O ponto específico deste cerne é a explicação de que há uma localização específica do PA que leva a perda da forma humana, chamado local da não-piedade, e que o PA pode ir e voltar daquele local por meio de exercícios, de maneira que a perda da forma humana é algo a se cultivar, e não uma vitória definitiva. O Nagual Juan Matus continuou a explicação, em outro ponto, da seguinte maneira: “lugar da não-piedade é a sede da implacabilidade. Mas você sabe de tudo isso. Por enquanto, contudo, até que você se recorde, digamos que a implacabilidade, sendo uma posição específica do ponto de aglutinação, é mostrada nos olhos dos feiticeiros. É como uma película tremeluzente sobre os olhos. Os olhos dos feiticeiros são brilhantes. Quanto maior o brilho, tão mais implacável o feiticeiro.” (O poder do silêncio)

Importante notar que em outros momentos Don Juan reafirma a Castaneda que a perda da forma humana não é uma conquista perene, mas algo efêmero, como todas as demais conquistas nesta senda, ele fala: “A primeira foi que você experimentou o que os feiticeiros do México antigo chamavam de visão clara, ou a perda da forma humana: o tempo em que a mesquinhez humana desaparece, como se fora uma mancha de névoa que pairava sobre nossas cabeças, uma névoa que vagarosamente torna-se clara e dissipa-se. Mas sob nenhuma circunstância você deve acreditar que trata-se de um caso encerrado. O mundo dos feiticeiros não é um mundo imutável como o mundo do dia-a-dia, onde diz-se que quando uma meta é atingida, você permanece um vitorioso por toda a vida. No mundo dos feiticeiros, atingir um objetivo significa que você adquiriu mais um instrumento eficiente para continuar a luta, que, por sinal, nunca termina.” (O lado ativo do infinito)

Outro ponto importante neste fragmento analisado é o fato de que a “perda da forma humana” é também chamada de “visão clara”, pois é a visão para além das percepções convencionais, para além da mente turbada pelos pensamentos e sentimentos usuais da humanidade.

Sendo assim, de forma sintética, podemos dizer que a forma humana é o nome dado para a forma de percepção do mundo decorrente da fixação do PA em um determinado ponto do ovo de luz, sendo que a sua fixação neste ponto consiste na adesão involuntária nos contratos cognitivos de mundo pela qual todos passamos em nossa vida. A alteração do PA pode ser feita mediante o acúmulo de energia e práticas consistentes de silenciar a mente, imbuindo-se o guerreiro de um manual de atuação próprio chamado “o caminho do guerreiro”. Este caminho perpassa por toda a prática deixada nos livros de Castaneda, práticas estas que levarão aquele que caminha nesta senda a um deslocamento do seu PA para um novo ponto chamado “local da não-piedade”, um deslocamento pequeno à esquerda capaz de levar ao rompimento do guerreiro com o pacto social. Esta nova posição do PA não é uma conquista perene, mas sim efêmera, devendo ser cultivada, é um local de maios eficiência e distanciamento do guerreiro às coisas mundanas, de tal sorte que ele precisará, para lidar com as coisas do mundo, de exercitar a sua arte da espeita, especificamente a loucura controlada, já que nada mais desejará, a medida em que mantém o PA neste determinado local.

Este não desejar, não temer, leva ao não sofrer, mas leva a um alheamento e distanciamento das coisas do mundo social, muito próximo ao caminho do budismo, este alheamento pode acontecer de maneis abrupta, por meio de um deslocamento do PA, muitas vezes direcionado por um nagual ou um evento externo, como uma planta de poder, ou por exercícios. Quanto ao movimento direcionado por forças externas, por minha própria experiência sempre a fixação é efêmera, dura algum tempo e inevitavelmente retorna a posição usual, quanto a movimentação deliberada e lenta, por meio da espreita e intento, essa acontece de forma gradual, mas a fixação, ainda que não seja definitiva, acontece de forma mais duradoura.

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