Eu e a gata

 



“O primeiro homem que, havendo cercado um pedaço de terra, disse “isso é meu”, e encontrou pessoas tolas o suficiente para acreditarem nas suas palavras, este homem foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassínios, de quantos horrores e misérias não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando os marcos, ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: Livrem-se de escutar esse impostor; pois estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos, e a terra de ninguém!”

(Jean Jacques Rousseau)




Olho, sentado, para o campo aberto, um horizonte que se abre a meus sentidos. Ao meu lado, a gata observa a mesma cena. Como Descartes, penso que penso, sinto que existo: única premissa verdadeira, será? Mas e o gato ao meu lado, se pensa, de alguma forma, existe, mas de certo não pensa como eu. 


Mistura-se ao que miro, no horizonte, pensamentos, alguns brotam de forma racional - neles conjecturo sobre os prédios, céu, nuvens, e coisas que aparentam como objetivas -, mas entremeiam-se pensamentos diferentes, não objetivos, imagens de nuvens que viram dragões, imagens, pensamentos sobre Deus, o futuro, o passado, e estes parecem diferir daqueles. Há, dentro de mim, duas mentes? Eis que surge o terceiro tipo de pensamento, aquele que reflete sobre os pensamentos outros, uns que parecem racionais, outros um tanto ilusórios, dentro de uma categoria construída dentro de mim e por mim. Sim, Descartes está certo, a certeza é apenas que penso, e existo, e ainda que este eu que esteja pensando seja sonho, para conjecturar deve este sonho existir, pois só é sonho se haver alguém que sonha, logo, ainda que se sonho, existo.


Dentre as mentes que existem, o trio, comparo, por meio do que penso, olhando a gata, penso se ele pensa, e se pensa, quais tipos de pensamento tem. Certo que detém um pensar mais objetivo, guiado por sua natureza de programação, melhor dizer instinto. Se olho e devaneio sobre nuvens, passado, futuro, ela o faz sobre o hoje. Observo a gata, e minha mente observa o que não vejo, o que ela deve pensar, há na ponderação da mente uma visão por sobre a visão, que a ela se mistura. Mas observo, objetivamente ao mesmo tempo, que ela observa a relva, as presas que ali estão, e percebe um pássaro desavisado. Olhos fixos, sem devaneios, ao que parece mais objetiva, sem interferências do dia de ontem, o dia de amanhã, as conjecturas mentais que tenho, em um foco que retesa seus músculos, que a faz repetir o velho ritual animal de seus antepassados de milhares de anos, em busca da presa. A ela não lhe importam os prédios distantes, as nuvens, a existência ou não de Deus, os dias difíceis que passou ou os dias que podem vir, a ela interessa o pássaro ali, presente, e a possibilidade captura-lo, agora. 


A mim, por minha vez, quiçá até esqueça, em meio a reflexões, de me alimentar naquele espaço de tempo. Me perco entre labirintos de pensamentos, observando, conjecturando os antepassados do gato, eu mesmo diferente de meus antepassados em muitos aspectos, igual a alguns, próprio no que sou, distante, como os humanos, de uma natureza que nos torne de alguma forma iguais, pois dela nos afastamos e nos antagonizamos como podemos, em nosso interior, em nosso ser profundo, em nossas reflexões, em nossa alma.


 O que me difere desta gata? A liberdade? O pensamento? A forma?


Na liberdade e sobre ela permito-me a conjecturar, e conjecturando, adentrando no meu espaço de pensar, a realidade que vejo desvanece, se haver realidade. Os sentidos se voltam para dentro de mim, como um caramujo em sua concha, quando me perco em meus pensares. Somos assim, aqueles que são dados a pensar, nem mais felizes nem mais tristes. Diria Rousseau mais distantes de uma felicidade mais simples, que dispensa o complexo, a estupefação sobre o que nos sobra.


Hobbes, em seu livro Leviatã, citava o estado perene de medo que introjetar-se-ia em um homem vivendo no estado da natureza, sem as leis, sem as regras sociais e justifica nisto o nosso consentimento livre em sujeitarmos-nos a um governo. Penso na gata, no estado livre, e se de fato a gata detém algum medo desta liberdade que detém consigo em sua própria natureza.


Reflito, mantendo-me no cogito, sinto-me, após todo esse tempo já passado de um processo injusto, com o mesmo medo citado por Hobbes, e entendo o que ele fala sobre as causas de discórdia da natureza humana. Vivo agora como se vivendo em estado de natureza, nu das vestes que me protegem, mesmo ainda sujeito a um governo por minha livre escolha, exatamente porque tudo aquilo que me faz e a todos sujeitar-me a um governo, como a existência de leis que deveriam me protegem contra injustiças, tenham sido para mim suspensas. O temor está de fato por não ter certeza se a troca que fiz, ao pertencer a uma sociedade, em dar o meu quinhão de liberdade a um governo em troca de segurança, foi troca que valesse, pois a mim não foi dada a contrapartida, já que alvo de injustiça, ou até da ausência dela até então. Isso me faz, indubitável, temer o corpo estatal que deveria me proteger, como o “[…] constante temor de morte violenta […]” que cita Hobbes sobre os homens livres na natureza que deveriam sentir. Meu medo, ainda que não seja causalista, concordo aqui com Humes, é que a mim seja dada a mesma fortuna dos homens livres e que eu tenha uma vida “[…] solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.”


A vida se tornou, portanto, um estado de desconfiança naquilo que deveria ser a maior confiança, subvertido que fui na natureza de minha existência social, na confiança de estar protegido por toda uma trama de conceitos abstratos construídos, coletiva e historicamente para me defender, conceitos os quais dediquei parte grande de minha vida a reproduzir e a propagandear, dada a confiança que lhes tinha.


E se assim o for, a moeda mais preciosa que dei, voluntariamente, ao acreditar em um estado e em me sujeitar a um governo me foi, na verdade, roubada. Se Hobbes nasceu gêmeo do medo, me tornei seu irmão adotivo no decurso da vida.


Concluo, portanto, que sobre a liberdade não sou. Não somos, já o disse antes, nenhum que optou por permanecer no contrato social em que vivemos, abdicamos do estado natural que vive a gata, que ao meu lado observa atenta, que ao invés de pensar busca sua comida, e que pode, livremente ir e vir quando bem entender, diferente de mim agora, diferente de mim a qualquer tempo.


Sim, a gata é mais livre que eu. Saber se mais ou menos feliz já não consigo mensurar, dado que a felicidade para ela pode ser o que faz agora, ao revirar-se no chão sob a luz do sol, brincando com pequenas borboletas que a sobrevoam. Me parece feliz, deveras, parece despreocupada com o mundo, comigo. Se reflito sobre ela, ela sobre mim não parece se importar, não agora que não tenho um naco de comida que lhe possa dar. Mas é livre, e além de toda conjectura isso posso afirmar, mais que eu mesmo, de fato que posso até dizer que dela sou mais um animal racional de estimação do que ela poderia ser de mim, um que ela não precisa alimentar, mas que eventualmente vem visitar em sua gaiola estranha. Mas ser propriedade é de minha natureza, e não da dela, portanto penso que me vê apenas como aliado em meio ao mundo que é todo a sua morada. 


Maldito homem que cercou a primeira propriedade, diria Rousseau, e infelizes os que não lhe chamaram de impostor.


Ela pensa, percebo, pensa dentro de certos limites, pensa talvez mais objetivamente que eu, em objetos concretos, naquilo que a serve a sua vida, a vida boa que ela pode ter, diante do que ela mesma pode conceber. Ela pensa tal e qual os antepassados dela todos pensaram, nós mesmos limites, dos mesmos gatos que desde tempos imemoriais o fazem, quiçá pensa nos limites do que pensava seus antepassados gatos ainda no Egito, quiçá pensa como pensou naquele tempo uma gata ao lado de um egípcio que conjecturava, como eu faço, sobre a vida. Eu e ele, no entanto, parecemos ser tão diferentes quanto são iguais os gatos, e no entanto me pergunto se absolutamente diferentes. Nas necessidades me assemelho, pelo menos as mais básicas e naturais, em outras, inventadas, talvez nos diferimos. Em pensamento somos absolutamente diversos, não nas reflexões, indagações, muito mais acerca do conhecimento do universo. Talvez me assemelhe a Khun-anup quando no século XIX a.C meditava dizendo “ignore uma injustiça e ela se fará duas.”


Os gatos, o egípcio e a gata na prisão, são exatamente os mesmos, logo que crescem, nos primeiros meses, já são tudo que podem ser. E nós, imperfeitos buscando a perfeição, incompletos e regidos pelos pensamentos, eu e o egípcio de milhares de anos, o que nos difere senão nacos de conhecimentos ainda incompletos, incapazes lá e cá para indicar soluções para a nossas próprias angústias da mente. Tenho eu, hoje, milhares de anos de conhecimentos conjugados na memória do mundo, e questiono-me: isso deveras me adianta senão para me trazer mais exasperação sobre a vida? De alguma forma o conhecimento que tenho, erguido ao longo de gerações, repassados por instituições, mantido e reproduzido me serviu de algo para aqui, onde estou e reflito? Ao gato a vida parece mais fácil sem o pensar, talvez por estar ao meu lado, sob um sol, em um lugar cômodo, mas sem o refletir o amanhã para este gato não o angustia como angustia o meu amanhã a mim, a todo tempo, portanto a ele o “não cogitar” parece mais doce que o meu cogitar. Penso, logo sinto, e se sentir muitas vezes é dor, não sentir deve ser algo bom, a ignorância do mundo como dádiva. 


Na forma também me difiro do gato, este o aspecto mais essencial. Fácil reduzir e dizer: somos diferentes por sermos diferentes, pois o simples é facilitador da razão, diria Ockhan com sua navalha. Isso me apraz, sim, já somos diferentes em liberdade, pois a minha é restrita pelo Leviatã (que parece ter me ludibriado na troca), somos diferentes em pensamento (o fardo que tenho de pensar e me angustiar não detém o gato), só me cabendo pensar que, a diferença em forma é diminuta coisa dentre todas. Como forma posso me dizer mais especializado em algumas coisas, menos em outras, talvez sendo o dedo polegar o que me faz parecer superior ao gato em instrumentos. Mas este dedo, se em estado de liberdade eu vivesse, em comunhão com a natureza (se é possível ao homem), seria eu mais bem sucedido que o gato? Penso e sinto que não, pelo menos não sem que o dedo fosse guiado pela tal razão. Perco então em mais essa comparação.


Sim, o gato, que não pensa como penso, que não cogita, que é livre e especializado em sentidos e forma a seu próprio bem parece melhor, não que eu queira sê-lo, longe disso, pois o cogito me faz distante deste querer. Ainda me apego a exasperação, como diz Hume, a soma de memórias fragmentadas de minha própria história, somadas a imaginação de meu intelecto em seus espaços vazios e falhos me fazem acreditar ser o mesmo que era ao nascer, e da continuidade ilusória, amar o que sou, e querer permanecer, paixão mais rudimentar em qualquer ser. Dentre as paixões a maior é o apego gerado pela memória do que sou, nestes fragmentos ajuntados pela cola da imaginação, e este resiste e subsiste a toda paixão. Tenho memória e isso a gata também tem, pois sei que me reconhece. Mas tenho a imaginação que ela mesma não tem, e com a imaginação a esperança, a ânsia pelo amanhã melhor que nos movimenta a todos e nos distancia daquele portão do inferno de Dante em que está escrito: "abandone toda esperança aquele que por aqui entrar". Sim, pois o inferno é a ausência de paixão pelo futuro: a esperança.


Assim me pego em algo tão mínimo que pode ser tudo que me distância do gato, a esperança, a projeção do amanhã. O gato, vivendo para o hoje, o vive pleno, mas quando há dor no hoje, pode por ela ser consumida, por não saber poder haver amanhã, esvai-se no hoje, inocente e doce desconhecimento de dias por sobre dias que se seguirão. Eu, vivendo o hoje o faço, ainda que tenha qualquer problema, e por maior que seja, não obstante qualquer desafio, porquanto sei que há e sempre haverá possibilidades no amanhã: portanto, o que sou hoje é sempre potência para o que poderei ser amanhã.


De alguma forma a gata me ensina a viver o hoje, enquanto rola sob o sol, enquanto mira o mundo que a cerca, enquanto se abstém dos pensamentos por sua própria natureza. E de alguma forma ensino a gata sobre o amanhã, enquanto a todo dia dou nacos a ela de comida e ela aprende, com um causalismo não lógico, que sempre haverá alguma comida no amanhã, ainda que um dia, quando daqui sair, essa verdade não mais existirá, dia em que ela voltará a viver tão somente para o hoje que me ensinou a viver. Sei que nela também não haverá saudade, ainda que possa haver lembrança, e tudo será soterrado pelo hoje pueril que a faz, como todos os gatos que a precederam, sobreviver.


Comentários

  1. De certo, todos este s fragmentos de inconfidência guerreira, já ultrapassou um livro! Se ainda não o fez, a publicação destes sentidos renderia noite de autógrafos!
    Saudações!
    Gaivota

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