Reflexões sobre o livre arbítrio





Há, nesta nossa breve passagem, vivendo nesta mesma jornada, incontáveis seres. Apenas para efeito argumentativo peço que foquemos naqueles, e apenas naqueles que compartilham a existência e que, concretamente, temos ciência da existência. Daqueles que detém o mesmo molde, os humanos, somos mais de 7,9 bilhões. De outros animais, só em relação a espécie são cerca de 8,7 milhões, dentro de cada uma delas milhões. Representamos, seres cientes, apenas 0,01% da vida na Terra, quase nada, mas ocupamos e transitamos em todos os cantos.

Quero dizer que, de alguma forma, e por algum motivo, nossa linha, como indivíduo, é contemporânea com a de incontáveis outros seres, que cruzam conosco, de alguma forma, nesta pequena jornada. Desde os fungos que compartilham a nossa pele, os vírus que bagunçam o nosso corpo, as bactérias que convivem em nosso ecossistema chamado corpo e aqueles que, externamente, nos servem de alimento, de companhia, de vida apreciada, rejeitada, temida, negada, etc. Há anda as plantas, os fungos e todo o tipo de vida que, de alguma forma harmônica, coexistem conosco. Pensar nessa situação já nos abre caminho para uma série de indagações acerca da ordem das coisas.

Por algum motivo, seja o acaso ou uma necessidade subjacente, convivemos todos nesta mesma linha espaço-temporal. Vivemos na mesma orbe planetária, compartilhando do mesmo tempo de existência, alguns já partiram e outros ainda chegarão antes de nossa partida, de forma que compartilhamos algo, e algo nos conecta. A conexão que quero aqui dizer não é nada, por enquanto, espiritual, é de ordem física, palpável. O ar que inspiramos contém o ar exalado pelas plantas, portanto nos ligamos por moléculas de átomos que também nos compõem, que se transformam e migram cá e lá. A matéria dos animais nós mesmos consumimos, e eles e nós consumimos os vegetais que, por sua vez, consomem energia que vem do espaço, da luz emitida por nosso Sol, transmutando-a em matéria carbônica que se transforma em força para os herbívoros que alimentarão os carnívoros que, por sua vez, serão alimento para o solo, e para fungos, e bactérias e vírus e, bem, todos já me entenderam. Há uma cola em nós, de tal maneira que somos interdependentes, de alguma maneira nos conectamos, podemos nos simbiotizar, podemos nos predar, nos destruir ou até, eventualmente, nos harmonizar.

Agora passo do físico, visível, palpável, ainda que introdutório, ao metafísico, buscando dedilhar linhas do entendimento que vim aqui buscar. Venho pensando, dentro desta conexão que nos une, nós e todo resto que aqui estamos, se há algo que nos rege de tal sorte a manter a harmonia. Seria possível a existência de uma força ou uma inteligência cósmica capaz de manter a harmonia e a desarmonia de tudo, de tal sorte a manter o equilíbrio pelo menos aparente nas coisas todas que vemos? Se assim fosse, e se houvesse, há um plano traçado para a vida de cada um? 

Penso e questiono questões que estão longe de serem respondidas. Olho para o passado e busco compreender desde a origem das coisas todas, pelo menos em nossa Terra, quando o primeiro ser vivo, pela confluência de eventos cósmicos dos mais improváveis, nunca repetidos, se formou. Desde aquela formação primeira a cadeia de eventos desenvolveu a vida, separou e multiplicou células, compôs diferentes espécies, mutações genéticas havidas por erros de reprodução, eventos improváveis, pela repetição até reprováveis, que por erro se mostraram acerto e aumentaram, geração após geração, a variabilidade da vida na Terra até a sua culminância, que somos nós. Desde a primeira espécie, dentro dos troncos comuns, os cientistas já se debruçaram, e por Darwin sabemos sermos a culminância do que Jack Monod chama de sucessão de “acasos e necessidades”.

E penso mais uma vez, penso por ser parte de meu existir, questionando se todo esse acaso o é de fato ou culminaram de uma inteligência maior. E me questiono, sabendo não haver resposta, sobre aquele evento original que permitiu que hoje cogitemos acerca da origem das coisas. Sim, somos nós, como entes, que conseguimos, unicamente, olhar para o passado e questionar a origem, o agora e o porvir, diria Heidegger. 

As questões que me propus, acima, digo serem transcendentais suficiente, e irrespondíveis, por certo, para o momento que vivo, pela minha própria insuficiência e da civilização do tempo em que estou, esse agora que compartilhamos. Me faço, assim, questões menos transcendentais e mais pessoais.

Primeiro, nesta ótica, me questiono sobre a possibilidade de termos algum livre arbítrio, alguma capacidade de decidirmos livremente pelo caminho que, neste emaranhado de seres que coabitam tempo-espaço conosco, de algo decidir de forma completamente livre. Seria possível que todos os seres, neste incontáveis de seres que aqui coabitam, pudessem dar-se à possibilidade de ter a liberdade plena de decidir? Penso se haveria possibilidade de que, cada um de nós, pudéssemos puxar as cordas para onde bem nos aprouvesse sem que isso afetasse, de forma definitiva, a vida de todos os demais que nos cercam. Me recorro, de início, as palavras de Wayne Liquorman ao questionar sobre o livre-arbítrio, perguntando se se houvesse, de fato, não estaríamos, neste exato momento, todos fazendo algo muito melhor? Não seríamos todos ricos, felizes, saudáveis, ricos, iluminados, apaixonados, desprendidos, etc?

Por um minuto coloquei-me a refletir acerca do que questionou Liquorman, pensei nas amarras todas que temos todos na vida, e questionei-me acerca destas amarras. Algum adulto médio, no dia de hoje, na maior parte do mundo, é preso: filhos, cônjuge, contas, trabalho, estudo – responsabilidades todas de adultos. Os que não são adultos são presos a adultos que, sobre eles detém autoridade e responsabilidade. Aqueles que já passaram da vida adulta são presos as limitações físicas do tempo, e a família que, não raras vezes, ainda se mantém apegados. Isso em um nível social familiar, e a círculos restritos da sociedade. De mais a mais, pessoas são presas à contingências financeiras (não podem viajar por não terem recursos), ou limitações geopolíticas (lhes falta a autorização legal) ou mesmo biológica (lhes falta saúde), oras vezes até mental (lhes falta substâncias que lhes levam a depressão). E estou tratando apenas em termos de pessoas. Quando lidamos com os animais, da mesma forma, e mais ainda, são presos à instintos que ditam as suas vidas desde as gerações de milhares de anos que os precederam, irão migrar, cruzar, se alimentar e viver como seus antepassados todos viveram – parecem, a meu ver, ter programação de prisão mais simples, que não lhes permite sequer a reflexão da prisão.

Somos todos presos, assim poderia, os mesmos argumentos, serem reproduzidos a todas as espécies vivas desta Terra que, em último caso, são igualmente cercadas pelo universo além planeta, que não permite a nenhuma que dele se aparte, ainda que seja de tamanho insondável, sem aparatos tecnológicos ainda em desenvolvimento. A Terra é, no fim de tudo, uma grande prisão.

Mas dentro dela temos certa liberdade, e nós, humanos, a capacidade de buscar nos entender e ao mundo que nos cerca, e até de explorar o além-Terra. Mas agora, e para essa reflexão, me cabe entender como, se não temos de fato o livre-arbítrio vendido como mantra, foi trilhada a nossa jornada, e se de fato o foi por alguma inteligência superior. 

Dos seres vivos todos, exceto a nossa raça, sei que a programação é evidenciada nos instintos que guiam as vidas repetidas por gerações, só se modificando, em eventualidade, quando alguma mutação, imprevista, os leva a mudar, talvez fruto dessa tal inteligência cósmica que a tudo rege. O que difere a vida de um pássaro de hoje e o de milhares de anos antes? Absolutamente nada, a programação deles é mais simples, como se fossem “NPCs” da natureza. 

E nós, os humanos, se fugimos à programação, em grande medida, dos instintos, e nos declaramos conscientes de nossa jornada e de nossas escolhas cotidianas, como dizer que somos de fato livres? De fato, parte de nossa jornada como civilização ocorre a pretexto da superação dos instintos, a teimosa noção de que, fugindo dos instintos, somos livres. Mas ocorre que, primeiramente aos instintos mais básicos, ainda somos prisioneiros, ainda que tentem, os ascetas e outros, fugir deles. 

De fato, não podemos sê-lo, somos condicionados a tantos quantos são os fatores que diversas correntes nos prendem e nos obrigam a seguir, passo a passo, em direção a um caminho que não é propriamente a nossa escolha. Já nascemos presos, desde o momento do primeiro suspiro, antes de adquirirmos a maturidade da consciência que virá com o tempo, já somos presos. Somos condicionados, inicialmente, ao que querem os nossos pais, a comer o que eles determinam, morar onde nos levam, a andar para cá e para lá conforme nos guiam. Assim será até atingirmos a nossa maioridade. Durante toda a infância, quando voam livres pensamentos, está preso o corpo por regras de casa, não decidimos nada, pois somos contingentes do que decidem ser o melhor para nós. 

Adultos, muda-se o carrasco, mas continuamos na prisão de não decidir. Somos contingenciados pelas necessidades da vida, pela moda, pelas responsabilidades, pela cultura, pelas subculturas. Sonhamos, eventualmente, em doses pequenas de finais de semana, como poderia ser nossa vida se tivéssemos feito escolhas outras, mas não mudamos. Pensamos nos países que poderíamos visitar, que poderíamos largar toda a vida opressora, mas postergamos tudo para o amanhã que nunca chega.

E depois chega a aposentadoria, momento em que pensamos sermos livres, mas agora somos contingenciados pelas limitações físicas, os baixos salários, a não sermos totalmente livres.

Dentro disso tudo não há livre arbítrio. 

Há uma teia de coisas conectadas que, movendo-se uma ponta, toda teia é afetada, puxa-se de um lado e estica-se de outro, e entendemos como estamos conectados aos demais, aqui, no ciberespaço, lá fora, no mundo real, a todo tempo condicionantes infinitas estão sucedendo-se para que façamos o que achamos serem escolhas. Começou a trama a se desvelar, do inexistente livre arbítrio, por Freud, ao dizer que o inconsciente rege grande parte de nossas vidas. Escolhas que pretendem como conscientes são senão produtos de traumas e vivências que nos fazem optar sem saber, e crendo saber e sermos conscientes. Sem livre escolha, sem consciência não há livre-arbítrio. De mais a mais, grande parte da vida, e escolhas, são apenas contingências de fatores essenciais para se viver: comer, dormir, beber, se relacionar, etc. Condicionados que somos a fazer grande medida de grande parte de nosso tempo, nosso dia, nossa vida.

Na luta civilizatória e na busca pela superação e controle dos instintos que regiam aos nossos antepassados, os macacos segundo Darwin, nos condicionamos a outras programações, eminentemente humanas. Condicionamentos sociais ao invés de meramente instintivos, bioquímicos, trocamos a regência da natureza pela regência dos acordos e contratos sociais. Nos juntamos e aceitamos a programação de expectativas sociais, de condicionamentos, até mesmo do que precisamos interpretar do mundo para sermos tidos como normais, e sequer a cognição é livre. Só se pode acreditar no invisível se dentro de religiões, caso contrário, a epifania mesma da religião, se solitária, é tida como loucura.

E assim começamos a recuar e entender que, pode até ser que tenhamos algo, um quê de livre-arbítrio, mas é parte ínfima de nossos dias nesta Terra. No começo não decidimos por não poder, somos bebês. Depois não decidimos por não poder, pois somos tutelados por outros. Nestes primeiros anos somos tangenciados por eventos que formam um inconsciente que nos guiará, como parte da personalidade não controlada, para a maioria das decisões. Além disso teremos o quinhão do mundo social a nos determinar, por boletos, regras e obrigações, o que teremos que fazer dia após dia. Decidimos, pois, escolhemos, sim, mas condicionados por “previalidades” que nos condicionam sem sabermos, e justificamos, após a determinação, que nós que escolhemos aquilo. Decidimos por condicionamento e, após decidir, justificamos a decisão crendo ser livre escolha, quando apenas é um direcionamento dado previamente por condicionantes bioquímicas, psíquicas (inconsciente), sociais, morais e até perceptivas (interpretativas).

E deixamos esse tal de livre arbítrio para ser mais uma história coletiva, quiça apaziguadora de consciência, tavez apenas para que se possa crer no mundo para além, baseado em prêmios e punições, pois não fossemos levados a crer no livre arbítrio, na mesma hora romperia a ideia de céu e inferno, pois tudo que tivéssemos feito nesta jornada seria apenas condicionado, previamente, seja pelo acaso das coisas que coabitam a existência, seja pela necessidade de que exista um equilíbrio entre tudo que é vivo, questões nas quais não se pode encaixar o livre arbítrio.

Oras, se fosse assim, e fôssemos livres, volto-me ao começo do texto, não estaríamos todos em lugares diferentes, com vidas diferentes, mais felizes, mais ricos, mais bem sucedidos, mais livres de tudo que nos amarra e que nos faz deixar os dias bons para os dias do amanhã que quiçá um dia chegarão?

 

 

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