RECAPITULAÇÃO COMO PROJETO DE VIDA




 A jornada do guerreiro é uma jornada de retorno, um caminho de volta para o seu reencontro, para a sua redescoberta, para as origens, por isso insisto: não há caminho sem a base da recapitulação.

Voltar ao passado é o caminho trilhado para o paraíso perdido, deixado naquela já distante infância de outrora, quando o vínculo com o Espírito, com a essência, era mais forte. É como naquele fragmento de tão bela história de Guimarães Rosa (Sertão Veredas) “Então Medeiro Vaz, ao fim de forte pensar, reconheceu o dever dele: largou tudo, se desfez do que abarcava, em terras e gados, se livrou leve como que quisesse voltar a seu só nascimento.” Da mesma forma e com o mesmo espírito deve estar impelido aquele que anda nessa senda de conhecimento, buscando voltar ao “seu só nascimento”. Tudo mais é transbordante, não é da pessoa, mas aglutinou-se como crosta em seu ser, escondendo aquele verdadeiro tão dentro, que sequer consegue ser visto.

Eis então que se posta o voltar ao passado. Entrar no túnel do tempo e reconciliar-se consigo, com seu eu verdadeiro, com seu só nascimento. Passo a passo que se faz, a recapitular, percebemos que não somos nós mesmos, senão um quinhão de tantas pessoas e coisas que se passaram ao largo de nossa vida, e que inevitavelmente nos trouxeram até o aqui. Tal é reflexão rasa, própria até da psicologia, mas o guerreiro dá passo além. Ele volta, devolve aquilo que não é dele, agradece aqueles que o ajudaram, despede-se dos que atrapalharam, encerra as promessas passadas, paga as dívidas e livra seus credores de suas próprias, para então estar livre. O guerreiro busca o zero da origem, que somado ao zero do fim pode permitir o infinito (0 sobre 0 e vem o ∞).

E descobre-se como não se recordava. 

Aquele velho tio que amava, vê, recapitulando, que dele adquiriu certa forma de falar.

Daquele amigo que há muito não via, levou uma promessa há tanto feita, e nunca cumprida.

Daquele primeiro amor, já há tanto esquecido, levou fragmentos de juras eternas que não duraram um mês.

Dos pais os sonhos que não eram seus edificaram a própria vida.

E os sonhos, que antes de tudo eram seus próprios, ficaram escondidos entre escombros de tantos, tantos nós, entre outros, que esconderam, por tanto tempo o verdadeiro eu.

Revolver o lixo, entender padrões, saber que foi condicionado, dia após dia, ora com dor, ora com amor, até chegar a composição do que é hoje, na sólida montagem que diz chamar-se história pessoal, que nada mais é que um emaranhado de desejos e medos outros incorporados ao “seu só nascimento”.

O guerreiro, após uma vida de recapitulação, devolve tudo que não é seu, busca aquilo que tinha perdido, e finalmente se encontra consigo mesmo, se reconciliando e estendendo as mãos aquele há tanto esquecido. Precisa, assim, entender que a sua história pessoal nunca foi sua, mas um emaranhado enfadonho de repetições de outros, a soma e subtração de vidas que se encontraram, no ocaso cósmico, e que entre encontros e desencontros distorceram o ser que foi.

Sim, há algo de cristão no que falo, no reencontro da criança esquecida para atingir o paraíso perdido, da pureza esquecida. Há também algo de budista quando o digo, no abandono do ego construído. Há, talvez, de tantas e tantas religiões que entendem o começo e o fim como pontos centrais, que se ligam pelo hiato que é a vida entre eles. Mas nada é tão completo como a fórmula do donjuanismo (nagualismo tolteca), a fórmula de reconduzir-se de forma sistemática ao passado, de recobrar energeticamente as energias, devolver as alheias e de, fisicamente agir para pagar e apagar as promessas do passado, feitas de forma inconsequente, mas que guiam a vida para destino certo, distante tanto quanto há do destino mágico.

Recapitular não é apenas meditar, esse é apenas o primeiro passo. Meditar, respirar, na caixa ou fora dela, é o processo mágico energético que vai guiar o guerreiro a agir, fisicamente, a revisitar lugares, rever pessoas, despedir-se de algumas, pagar a outras e receber o pagamento de tantas. É o processo que vai evidenciar comportamentos que são adquiridos, para serem abandonados, mudados. É o processo que evidencia e se liga a arte da espreita, para concomitante e sistematicamente apagar a história pessoal.

O recapitulador (espreitador de sua história), se torna espreitador da vida, com o movimento sistemático de seu ponto de aglutinação a medida que recupera energia, descobre padrões, desfaz nós de promessas. Nessa volta ao passado, nesse reencontro de seu só nascimento, move sistematicamente o ponto de aglutinação, o afrouxando, voltando ao padrão da infância, experimentando locais milimetricamente próximos ao atual, que permitirá uma maior fluidez perceptiva. 

Entenderá que os padrões adotados vêm de pontos e locais de fixação, saberá que as sensações físicas todas somadas indicam o movimento do ponto de aglutinação, e aprenderá a induzir tais sensações para se tornar outras pessoas. Com a prática, isso o levará a maior facilidade, também, do sonhar, e, de forma mais avançada, aprenderá até a recapitular os sonhos, ponto que hoje não irei explicar, mas que revolve uma quantidade enorme de energias do outro eu, que também precisa recapitular.

Eis pois, como exercício base, o que aquele que se propõe a essa senda de conhecimento deve se dedicar, como se dedica o estudioso, na leitura de livros, ou o atleta, no cultivo do corpo, ou asceta, nas práticas de abstinência, deve o guerreiro praticar, diariamente, o exercício da recapitulação. 

Descobrirá, além de tudo, um estranho alheamento de tudo que há, inicialmente parecerá, as pessoas que o cercam, distante, desinteressado, mas depois conseguirá, para não deixar rastros, usar a espreita para compor a falta de sensibilidade que demonstrará com o mundo que o cerca, pois terá conquistado, em definitivo, a forma original, sem piedade, sem medo, sem acúmulo de lixo desnecessário e totalmente senhor de seu próprio domínio, sendo comida sem sabor para aquela força pendular que circula acima das cabeças de todas as pessoas, e que gera os impulsos sociais todos aos quais estamos acostumados.

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