A PREMISSA PARA O CAMINHO DO CORAÇÃO

          



              O primeiro passo trata-se de conhecer-se, entender de fato o que se é, pois há, dentro do conjunto de fibras que compõe cada individualidade, preferências energéticas, dada a composição única de cada um, que influenciarão a própria caminhada nesta individualidade vivida.

No nagualismo a recapitulação é o caminho para se encontrar, para se descobrir. Em níveis já tratados, a recapitulação inicia-se com a revisitação, a um nível profundo, de toda a vida pós nascimento, no desvirtuamento que ocorre ao ser humano após nascido, com a socialização, que é o serviço engendrado pelos voladores na vida de todas as pessoas. Os passos sequenciais é a recapitulação de eventos intrauterinos, depois a recapitulação das atividades de segunda atenção no retorno dos ensonhos desde o nascimento, tópico de especial dificuldade.

Lewis Carroll, em seu livro “Alice no país das maravilhas”, narra parte dessa jornada de autodescoberta, de forma ilustrativa, e dela depende toda a caminhada. Há uma interlocução entre o conhecer-se e o caminho do coração descrito por Don Juan, comecemos então resgatando a fala do velho nagual:

 

“A erva-do-diabo é apenas um entre um milhão de caminhos. Tudo é um entre um milhão de caminhos (“un comino entre cantidades de caminhos”). Portanto, você deve sempre manter em mente que um caminho não é mais do que um caminho; se achar que não deve segui-lo, não deve permanecer nele, sob nenhuma circunstância. Para ter uma clareza dessas, é preciso levar uma vida disciplinada. Só então você saberá que qualquer caminho não passa de um caminho, e não há afronta, para si nem para os outros, em largá-lo se é isso o que seu coração lhe manda fazer. Mas sua decisão de continuar no caminho ou largá-lo deve ser isenta de medo e de ambição. Eu lhe aviso. Olhe bem para cada caminho, e com propósito. Experimente-o tantas vezes quanto achar necessário. Depois, pergunte-se, e só a si, uma coisa. Essa pergunta é uma que só os muito velhos fazem. Meu benfeitor certa vez me contou a respeito, quando eu era jovem, e meu sangue era forte demais para poder entendê-la. Agora eu a entendo. Dir-lhe-ei qual é: esse caminho tem coração? Todos os caminhos são os mesmos: não conduzem a lugar algum. São caminhos que atravessam o mato, ou que entram no mato. Em minha vida posso dizer que já passei por caminhos compridos, mas não estou em lugar algum. A pergunta de meu benfeitor agora tem um significado. Esse caminho tem um coração? Se tiver, o caminho é bom; se não tiver, não presta. Ambos os caminhos não conduzem a parte alguma; mas um tem coração e o outro não. Um torna a viagem alegre; enquanto você o seguir, será um com ele. O outro o fará maldizer sua vida. Um o torna forte; o outro o enfraquece.” (CASTANEDA, A Erva do Diabo)

 

E aqui tangenciamos ao caminho de Alice, na história:

 

“— Você poderia me dizer, por favor, para qual lado devo seguir? 

— Isso depende bastante de aonde você quer chegar — respondeu o Gato. 

— O lugar não me importa... — disse ela. 

— Então também não importa para qual lado você vai — afirmou o Gato. 

— Só me importa chegar a algum lugar — Alice se explicou.
— Você vai chegar a algum lugar — decretou o Gato. — Para isso basta caminhar. (Carroll , Alice no País das Maravilhas).

 

Caminhar, como disse o Gato, é o suficiente, mas Don Juan disse que caminhar em um caminho que tem coração é essencial, e deu pistas de como encontrar um caminho que tenha coração.

Sabem, na vida em que vivemos há diversos caminhos que podemos seguir. Alguns optam por serem médicos, professores, advogados, terapeutas, tiktokers, etc. Em paralelo, alguns optam por buscar responder as questões existenciais por meio da religião, outras do xamanismo, outras do ocultismo, outras do nagualismo. São apenas caminhos, nos dizeres de Don Juan “un comino entre cantidades de caminhos”, quaisquer deles o levará a algum lugar, parafraseando o gato, basta caminhar. 

Mas qual deles tem coração?

O caminho para se encontrar o coração em um caminho se faz encontrando, primeiro, o coração do caminhante. O início da jornada perpassa, essencialmente, pelo que caminha, a busca inicial é sempre a autodescoberta, e só assim conseguimos nos ajustar em um caminho que seja sincrônico com o nosso coração. Como saber qual caminho tem coração sem saber o que é teu coração?

O primeiro passo da caminhada é reconhecer-se, entender quem é, entendendo ajustar sua vida a isso, após ajustar a sua própria vida, aprender a amar-se, e depois tudo fluirá.

De outra forma, sem que seja egocentrismo, eis o caminho do coração, partindo da autodescoberta, mais uma vez na trilha de Alice no País das Maravilhas, em uma conversa tida por ela e o Coelho:


“— Você me ama? Perguntou Alice.

— Não, não te amo! Respondeu o Coelho Branco.

Alice franziu a testa e juntou as mãos como fazia sempre que se sentia ferida.

— Vês? Retorquiu o Coelho Branco. Agora vais começar a perguntar-te o que te torna tão imperfeita e o que fizeste de mal para que eu não consiga amar-te pelo menos um pouco.

— Sabes, é por esta razão que não te posso amar. Nem sempre serás amada Alice, haverá dias em que os outros estarão cansados e aborrecidos com a vida, terão a cabeça nas nuvens e irão magoar-te. Porque as pessoas são assim, de algum modo sempre acabam por ferir os sentimentos uns dos outros, seja por descuido, incompreensão ou conflitos consigo mesmos.

— Se tu não te amares, ao menos um pouco, se não crias uma couraça de amor próprio e de felicidade ao redor do teu Coração, os débeis dissabores causados pelos outros tornar-se-ão letais e destruir-te-ão. A primeira vez que te vi fiz um pacto comigo mesmo: 

“Evitarei amar-te até aprenderes a amar-te a ti mesma!”. (Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas)


E voltamos ao começo do texto.

A maioria das pessoas não encontra o caminho do coração por não conhecer o seu próprio coração, por não se amar e buscar, externamente, qualquer sentido para as coisas, quando qualquer caminho é apenas um caminho. 

O Gato e o Coelho deram as lições fundamentais a qualquer um de nós para encontrarmos o caminho do coração, que demanda uma autoreflexão, autoconhecimento e amor-próprio. Pessoas tristes com suas vidas são pessoas que, por desconhecerem seu próprio coração rumam por caminhos sem terem uma vida disciplinada, deixam de largar aquilo que as consome por medo de que isso seja uma afronta a si ou a outras pessoas, pois vagam sem responder a si mesma, a amarem-se, como leciona o Coelho. 

Um caminho sem coração é letal, mingua a energia dia após dia, até a destruição final, eis o preço que se paga por não se conhecer e, não se conhecendo, não saber aquilo que, no mundo, lhe ressoa mais profundamente dentro do seu coração.

 

Para mi solo recorrer los caminos que tienen corazon, cualquier camino que tenga corazon. 

Por ahi yo recorro, y Ia unica prueba que vale es atravesar todo su largo. Y por ahi yo recorro mirando, mirando, sin alinto. 

(Para mim só existe percorrer os caminhos que tenham coração, qualquer caminho que tenha coração. 

Ali viajo, e o único desafio que vale é atravessá-lo em toda a sua extensão. E por ali viajo olhando, olhando, arquejante.) 

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