ABERTURA E ESTRANHAMENTO: ENSAIO SOBRE O ENTE, A CONSCIÊNCIA E A POTÊNCIA DE SER
“O ser é e o não-ser não é.”
— Parmênides
Como abertura, aquela pessoa que pensa como o existencialista não crê no bem e mal, não a priori, pois não há conceitos morais ou divinos que são universalizáveis a quem é pura abertura, ou então isso se tornaria fechamento e restrição. Abertura é ausência de pressupostos quaisquer, ainda que eles possam se consolidar pela experimentação da própria pessoa, não por imposição, não por repetição, mas por escolha, que pressupõe o saber, o conhecer.
O que são os valores de bem e mal? Lembro-me de antigos desenhos animados, e talvez os atuais andem em igual sentido. Havia um, He-Man, ele era a representação do bem, tendo como antagonista Esqueleto, o representante do mal. E pergunto, qual deles é bom, qual deles é o mal?
Impossível saber. Sei que ambos são acorrentados aquilo que se lhes impuseram. He-Man, o herói, é acorrentado por um senso de dever que o impede de viver para si, devendo sempre salvar aos mais fracos que ele, proteger um castelo, um reino e tudo que lhe é externo, refém sempre de uma espada que lhe dá o poder. O vilão, Esqueleto, é também igualmente acorrentado, a querer conquistar aquilo que He-Man defende, preso então, da mesma forma, ao senso de dever pela conquista do outro, por comandar exércitos para dominar, preso ao seu cajado mágico.
Ambos, dentro do que foram criados para ser, são igualmente acorrentados, gêmeos invertidos como um ser e a sua imagem no espelho. Ambos, dentro do estranhamento, mantêm-se distantes de si mesmos, um estranhamento de si, tornando as suas vidas algo para além de um fim em si mesmo, de autodescoberta, fechando-se nas concepções que por algum motivo lhes foram impostas, de bem, de mal, de certo, de errado, de força e de poder. São tudo para o outro, nada para si, acorrentados e instrumentalizados para coisas externas a eles mesmos, que sequer sabem se refletem ao que são.
Não é, pois, nenhum deles, abertura, mas sim fechamento, acorrentados um aos outros, sob óticas diversas que não chegam a verdade alguma, pois são relativistas.
Nós mesmos, na maioria das vezes, não somos também presos. Concepções foram formadas desde antes mesmo de nossos nascimentos. O primeiro grilhão não foi o nome, tentando nos caracterizar como um algo, sempre menor que as possibilidades do que aquele algo de fato o é, quando esse algo é humano. Como abertura somos tudo, e como tudo, infinitos na potência de ser, mas reduzidos, pouco a pouco, desde o nosso nascimento.
Nascemos e ganhamos um nome, uma nação para dizer ser nossa, e nos prender em fronteiras, depois nos ensinam uma língua, uma dentre várias, não sem antes nos reduzirem a expectativas todas, ceifando sonhos que fogem aquele planejado, cortando asas que permitam voar para além, por dizer-nos a todo tempo que as possibilidades são tão só aquelas a nós impostas.
E nos prendem em uma casa, e nos agrilhoam a um nome, e nos dão um gênero, nos projetando em sonhos. Nos ensinam a dormir e a acordar, nos impedem de escolher se estudar, ou o que estudar, e nos ensinam, desde muito cedo, ao que adequar o nosso paladar. Nos dão deuses para acreditar, e assim, daquela potência de tudo, nos tornam possibilidade de poucas coisas, tão restritas que não se pode comparar.
E nos tornamos presos. Da abertura nos tornam fechamento, daquela potência de ser, de indefinido porvir, nos tornam um restrito e diminuto sentimento, afogando velhos sonhos, vislumbres de possibilidade.
Mas o ser humano, como tendo a essência do não saber, sendo ainda abertura até o derradeiro dia de sua vida, pode, arrancar as amarras, quebrar as correntes, destrancar as portas de seu ser, e lembrar a potência do que ele mesmo é. Se se matam os deuses que lhe foram impostos, se retiram as travas e limites, sem pecado, se torna impecável em seu seguir, derrubando as barreiras morais primeiras que agrilhoam o ser. E então, sem deuses, torna-se indelevelmente livre aquele que entendeu, sentindo a lufada de ar da liberdade que se avizinha, e o terror de agora nada ter em quem lançar as desculpas de fracassos, mas sem ninguém, além de si, para atribuir os sucessos.
Segue-se, assim, a verdadeira busca. A verdadeira busca é fugir de conceitos universais e descobrir, para si, os preceitos morais dentro da abertura, e então fiar-se neles, pois não se deve instrumentalizar a si próprio antes de qualquer pessoa, nos mesmos, como essência, não podemos se meio, e depois todo o resto.
Não dizem que a dignidade é o postulado pelo qual ninguém deve ser usado como instrumento. E por que, se assim o é, a pessoa deve instrumentalizar-se para o outro. Há um quê de sacrifício desnecessário em se tornar instrumento ao outro, e isso não é abertura, de forma alguma, mas sim fechamento, acorrentamento, tal e qual o vilão ou herói que eu mesmo citei há pouco.
Ser instrumento da justiça, ou ser instrumento do maldade, ambos são medidas de instrumentalização de si, em razão dos outros, sendo, portanto, fechamento apenas. Vejam, justiça ou injustiça não é senão um postulado que se fia em um argumento moral a priori, construído anteriormente por alguém, e imposto a outrém. Não nasceu da busca, da descoberta, não permite abertura, não permite discussão: é porque é, e não se pode discutir! Se é assim, é fechamento da potência do ser humano.
Toda abertura do ser, ele mesmo, necessita de um pressuposto de dignidade partindo de si mesmo, dignidade que impele o ser a ser fim em si ele mesmo, um fim de buscar-se identificar em seus próprios postulados, livrando-se de todo fechamento imposto por ações externas ao longo da vida, aceitas por imposição ou negligência, transformando a abertura do ser em si em fechamento, e moldando o fim em si para instrumento: de um Deus, de um pressuposto moral, de uma regra social, seja do que for.
É dizer que a sociedade ou socialização corrompe?
De maneira alguma, é dizer que o ser, dentro da abertura, antes de conhecer-se acaba, por ocasião do véu do ser imposto a ele mesmo, permite-se ser sitiado pelas coisas que o cerca, e por repetição adaptar-se ao meio, pois a primeira corrente que se coloca em alguém não é senão uma venda, uma corrente para os olhos, que impedem de ver as correntes que o prenderão, e impedem de olhar para dentro de si mesmo, e entender-se ser de possibilidades, e não de restrições.
Aceitas, pois - as correntes da família, da escola, de deuses, de amigos -, acorrenta-se, a pessoa, por onde vai, e só pode livrar-se das correntes retornando aos caminhos percorridos. O ato de conhecer-se é, portanto, um ato de reflexão, de retomada interior, por baixo de cada corrente colocada, entendendo as suas raízes, e buscando a sua libertação.
Certamente, por não se permitir ser etéreo, não enquanto massa de possibilidade nesta terra, aquele que busca se liberar das correntes não ficará de todo desatado, mas após livrar-se de todas poderá escolher aquelas nas quais sustentar-se-á para não subir tanto aos céus da distância humana. Estará livre, no entanto, do bem e do mal, do certo e errado, descobrindo-se como fim em si, e iniciando a busca real por aquilo que o identifica.
A existência precede a essência, o acorrentamento social precede o entendimento, livrar-se do acorrentamento permite, então, identificar a própria essência, e então se faz a verdadeira existência.
E não nego, claro, a possibilidade de que aquele que um dia venha a ser livre, queira novamente se acorrentar a conceitos, se instrumentalizar ao outro, mas que essa decisão se faça dentro da consciência do que é, tendo se descoberto, pois sendo o ser abertura, sendo o ser potência de ser, pode também, é certo, escolher acorrentado ser.
Perfeito
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