A maleabilidade de ser

Por muito tempo passei enfrentando a busca deste algo que deixamos perdido em nosso passado. Já passei por tempos de luta em diversos seguimentos de minha vida, me tornando quase que um místico. Mas descobri que estava espiritual demais para conseguir identificar todas as facetas que a vida nos proporciona, e ser demais algo, impede que sejamos outros algos, mesmo que um pouco que seja. O importante na vida é experimentar esse mar de possibilidades em ser um e outro, em ser assim e assado, em ser prosa e silêncio.

Somos compostos por um ovo de luz que nos cobre e nos protege do infinito ao nosso redor, como um pintinho antes de nascer que fica protegido pela casca daquele ovo. A diferença é que nosso ovo de luz é maleável, energeticamente maleável e pode se moldar as mais diversas formas possíveis. O nosso ovo de luz reflete nele a realidade, sendo ao mesmo tempo a teia que sustenta e o véu que encobre a verdadeira realidade.

As rotinas servem a um propósito específico de enrijecer o nosso ovo de luz, e sedimentar nele conceitos, lapidá-lo a refletir apenas um “quantum” do mundo específico e acomodande que são os hábitos que se formam a cada pessoa. Cada um, em sua caminhada, tem uma forma especial de aprisionar-se dentro de seu ovo de luz, e achar aquilo confortável, enrijecê-lo até o limite máximo, esse se chama “desafio pessoal”. A alguns, desde muito cedo, lhe aparecem as “vocações” que logo se tornarão em hábitos e rotinas, que depois de algum tempo serão a argamassa da prisão pessoal. Alguns nascem “vocacionados” a serem gurus espirituais, outros tantos a homens de negócios, e outros a serem donos ou donas de casa. Cada um tem um cardápio variado de possibilidades que os sedimentarão na “lápide da existência”. Este é o “caminho da prisão”, a guinada social do que deveria ser o “caminho do coração” de cada um.

A questão não é fazer o que o coração pede, é aprisionar-se apenas neste âmbito de possibilidade na vida. Aos poucos, a pessoa que aprisiona-se em uma descrição, seja ela qual for, vai se tornando rígida naquela forma de pensar, naquela forma de ser, naquela forma especializada de ver o mundo, esquecendo-se das outras possibilidades. Energeticamente a forma luminosa, antes fluída, começa a tornar-se rígida, dura, a pessoa começa a ficar pesada e ensimesmada naqueles conceitos elaborados e que são refletidos em um vai-e-vem constante entre o ser que emana aquele modo de ver o mundo e o mundo refletido em seu ovo de luz de descrições, rotinas e hábitos.

Reduzir o reino de possibilidades, e andar por um só caminho enfraquece a grande visão que é nosso verdadeiro destino mágico. Não importa qual seja a escolha, ela nunca deverá ser entendida como a única e exclusiva escolha. Se assim acontecer, o coração virará prisão, e a liberdade sedimentar-se-á em uma lápide energética de vida. Romper os hábitos é mudar o rumo de sua caminhada, de alguma forma, em algum momento da vida, antes que seja tarde, antes que esteja tão solidificado o ovo de luz que seja impossível o caminho de volta. Modificar-se e possibilitar a renovação pessoal é permitir-se a continuar fluído, continuar movendo-se entre os campos de personalidade.

Já tive a possibilidade e o prazer de fazer isso por diversas vezes, já fui um tanto de pessoas e um tanto de visões de mundo que até me espanto ao recapitular, e sorrio regozijando-me do quão foi belo ver o mundo desta e daquela forma específica. Ser um alcoólatra inconsequente, sem conhecimentos e entendimentos mágicos, um leigo energético e um absurdo boêmio que se fazia de poeta das madrugadas. Já fui também um nerd sem solução, tímido e recluso dos cantos de sala, esportista de toda hora, cristão fervoroso das primeiras comunhões, comunicólogo, jornalista, direitista, esquerdista, centro-médio, já fui de tudo, desde o místico imerso profundamente nas artes mágicas de Eliphas Levi até um bíblico homem das casas de Maria. Ser e deixar de ser, construir e desconstruir-se é permitir-se à fluidez necessária para seguir a vida. E se hoje me perguntarem quem sou, não saberei ainda, quem não sou, saberei menos ainda. Apenas estou e nesta toada vou seguindo. Estou em um momento acadêmico, que não sou a todo tempo, em outras possibilidades agora, caminho em paralelo o ser místico dentro de mim, em outras horas sou o ser saudável, de exercícios e alimentação. Ora sou vegetariano ora não sou mais, pois nada é eterno, mas apenas o é enquanto dure aquela percepção. Assim sigo a vida bela, vida maravilhosa de percepções infinitas, que nos possibilita sermos felizes de formas tão diversas e belas, a vida é assim, esse emaranhado de possibilidades, e a medida que experimentamos essas possibilidades, refazendo a nossa história e nos desprendendo da história sedimentada pessoal, nos fazemos fluídos.

Então, caros guerreiros, observem-se e vejam quanto tempo estão como estão, e se não é hora de mudar a sua visão sobre o mundo. Será que o místico não precisa de um tempo de concretismo, ou o concretista não precisa de uma abstração? Será que aquele que busca conhecimentos empíricos não precisam de conhecimentos acadêmicos para experimentar outras formas? Será que o cristão não deve se tornar pagão e o pagão enfrentar uma igreja e se tornar cristão? É hora amigos, de romper paradigmas, de romper barreiras, de sermos como somos, testemunhas cósmicas do universo de possibilidades fluídos que representamos como o ser presente, que vivencia que observa e que, contemplando o universo das diversas formas, percebe nesta jornada que nada é tão fixo, correto ou acertado como pensamos. Isso é romper o espelho da fixação, é criar uma neblina nas certezas e flutuar por entre a percepção do tempo e espaço. Assim o espelho da autorreflexão não se solidificará, e a cada hora se refazer impedindo a solidificação do casulo da liberdade, para que ele não venha a se tornar a lápide energética da morte.