A imortalidade da alma

 



“O homem pode por fim à sua vida, mas não à sua imortalidade” (Milan Kundera)


Como poderia me esquecer de um diálogo dos tantos que tive na prisão, com aquele que tão pouco deixou e que, com eu, teve destino igual de prisão, ainda que em seu fim, guiado pela cicuta, foi guiado até o mundo de Hades. O diálogo quem me permitiu foi Platão, ao contar a história de seu mestre Sócrates, no Fédon, que é o diálogo sobre a imortalidade da alma, mas também, e a mim mais me cabe esta parte, sobre a prisão do ser imortal.

Antes disso, por um dos acasos de pensamento que me permite o tempo, de ter todo tempo e muito pouco poder fazer, me vieram reflexões sobre a alma imortal, a fagulha divina que anima a carne, e a carne mortal como veste, por consequência, ser a sua prisão. Depois, guiado por lembranças, percebi ter sido esta a mesma conclusão que chegou Sócrates, também em uma prisão, mas separado de mim por mais de 2.500 anos de distância.

E aqui, em meu cárcere pensei: “O corpo não é corpo por ter vida apenas, mas é vivo por ser animado, por ter dentro de si a alma.”

E neste pensamento me coloquei a escrever, relembrar o que tinha de memória sobre os escritos platônicos, não sem antes meditar de fonte de minha própria alma sobre o que a mim viera como meditação daquele dentre tantos e tantos finais de semana que se passaram.

Eu caminhava pelos limites pequenos a mim impostos, captando as luzes primevas do dia, deixando que o sol requentasse minha tez, após mais uma noite de sono. Senti, junto ao suor, saírem de meus olhos lágrimas, mas de algo que não sentia, pois não estava eu, em minha consciência, triste ou algo assim, não naquele específico dia, não sob aquele magnífico sol do infinito verão daquelas terras.

“É possível aos olhos o choro, sem que a alma queira ou lhe saiba?”

Assim começou a minha meditação naquele sábado.

“Se este choro for do próprio corpo, de dor ou distância que a alma, parte mais antiga, saiba em si resistir mas a carne, finita parte do todo, não o tenha ainda sabido?”

Eram nas indagações iniciais, quiçá banais, que havia guardada meditação profunda, que eu alongaria durante aquele dia.

Exercitar e lapidar a totalidade, no espaço ínfimo donde me guardaram, me aprisionaram, era a minha meta diária para esquivar-me da dor e da loucura imposta pelo cárcere, e tão somente a minha prisão imposta de nascimento a minh’alma, o meu corpo portanto, seriam os limites infindos de minha rotina diária, guiado por insights como o deste dia especial.

“Então a lágrima, sublimação visível da dor da invisível alma, se tornaria um senão néctar do sofrer da visível carne.”

Assumi eu, naquele sábado, a dualidade grega em meus pensamentos, alma imortal em veste mortal, e deixei que minha meditação me guiasse, que minhas consciência dada por minh’alma perene guiasse as ações de minha veste efêmera.

“Finitas mais incontáveis células amalgamados na existência una do ser que sou. Pequenas vidas inteiras, partes inscientes de um ser ciente. Nascimentos e mortes diários, incontáveis, nem sequer sabidos no corpo, túmulo e maternidade de incontáveis seres.”

Eu deveria meditar sobre mim, e o que sou, dentro do que sou, na dualidade que havia relembrado, redescoberto ou apenas imaginado naquele dia. Não importa de todo o motivo, a razão, importava a meditação em si, e as palavras que, como ocasional, me transbordavam. Ora me entupia de palavras alheias, em leituras sem fim, ora vomitava as palavras que me enchiam, e buscavam de mim fugirem, lançarem-se no mar branco das folhas que me observavam caladas, e que se agitavam por sob a minha mão, no gozo da fiação tecida pela caneta.

“Olho as minhas mãos, corpo, como se quem olha fosse outro. Olho por entre janelas dos olhos que poso sentir, que posso mover, que posso fechar, que posso dizer, não há dúvidas, serem meus olhos. Mas quem olha, percebo, e quem é consciente do olhar não posso dizer, não posso fechar, como as outras partes de mim. É a consciência que observa indizível parte, aquela que sussurra comandos ao corpo, que obedecendo me mostra, em suas pequenas janelas dos sentidos, o mundo que me cerca, e o interpreta a esse ser que sou.”

Eu buscava entender a dualidade, de tanto que temos de concreto, e tão pouco que temos de real. O ser que escreve sei que sou, e o ser que percebe, quem é?

“Se fecho os olhos, ainda consigo ver, mas com outro algo que não minha visão. Após a escuridão dos olhos cerrados, eis que vejo, como ser liberto, sem corpo, sem amarras, como um ser que não é de todo. Se abro os olhos, me servem de janelas os sentidos todos, a carne me serve à alma, a carne que sou me serve a alma que já era muito antes, e que será, após o tempo finito do corpo cerrar. Onde, a alma que sou me habita?”

Tinha me tido como dual, aceitado ser alma infinita, do porvir, do que foi, fagulha de um Quê divinal que não me recordo, preso e limitado, por nascimento, ao corpo carnal.

“Por que me esqueço do que sou ao sonhar, e esqueço do vagar liberto de sonho ao despertar? O sonho é de fato a liberdade do cativo, como dizia Augusto dos Anjos? Os sonhos são memórias perdidas ou o desejo da alma pela libertação?”

Como boa meditação as perguntas me impulsionavam a buscar. Eu via no corpo a mesma prisão vista pelos socráticos e platônicos. Se os sentidos de fato forem as janelas pelas quais a alma percebe o mundo, quão pequena fatia do mundo real não percebemos? Não que eu perceba o mundo como ilusão, mas é tão pequena parte de tudo que podemos perceber como amas imortais que somos. O corpo é, pois, fronteira mortal para a alma imortal, ainda que seja o corpo a potência da alma, como viria a dizer Kant, tantos e tantos séculos depois, mas ainda sem explicar que a potência é limitada, pois o mortal que abriga o imortal sempre o limitará, por sua própria incompletude e efemeridade, seja em tempo, seja no espaço, seja na forma.

“Se o corpo é a prisão da alma, assim se justifica a ilusão em que vivemos. Se a alma está reclusa na prisão do corpo, pagamos todo por uma sentença recebida ao nascer, nascer é sofrer, a vida é sofrer, pois tudo que nasce fenece, do nascer vem o perecer. Não parece crível que viver reclusa a alma seja algo que não punição.”

O entender é limitado, visto as limitações do corpo que entende, por meio da mente. A mente, condicionada, limitada, por meio da razão, não pode de todo compreender o imortal, posto que mortal e limitada. A compreensão do infinito nunca pode ser dada pelo finito, isso a mim se torna premissa certa de se constatar. Constato assim, por meio de meus sentidos, a finitude do ser que entende, por meio do comando do ser que transcende que também sou. Intuo, pois, a intuição está para além dos sentidos, e quando medito, sendo ura percepção, sinto o infinito que não posso descrever, sinto para além dos limites que meu corpo alcança.

“Entendo agora porque o corpo chora sem o saber da alma, pois sabe ser a carne o receptáculo do sofrer, cárcere finito d’alma infinita, de morada efêmera, pegadas de lembranças eternas que a alma levará pela caminhada da eternidade.”

Sócrates dizia, se bem me lembro, que a alma apenas conhece a verdade quando se afasta do corpo, quando, livre dos sentidos imperfeitos e limitadores se dá a investigar a verdade. Não que eu tome, em que medito, o corpo como mero obstáculo, ainda que não o tome por completo como potência, mas é certo que o tomo como limitador, por pura dedução de lógica. Se considero a alma imortal, e o corpo mortal, certamente a alma o corpo deverá ser menos, portanto, limitador.

“Se o corpo é então prisão da alma, mas nos limites desta prisão a alma domina, pode o ser imortal que somos fazer do mortal a sua melhor morada. Dilapidar a prisão e nela manifestar o seu melhor, refinando-a, expandindo-a, explorando-a, aparando as arestas como pedra bruta, até que possa ser a prisão algo próximo de um lar. Cobrindo as goteiras por onde entram os desejos, o sofrer, mais apta a resistir as intempéries da dor e da doença, da vida passageira que detém, em sua essência, o sofrer, posto que é pena.”

O corpo, ao que sei, carece de necessidades impróprias para alma. Somos tomados de desejos, fome, imaginação, rancores, amores, sabores. Desejos naturais da maquina carnal e desejos forjados da sociedade em que vivemos. Todos são, conjuntamente, distrações para a verdade que provavelmente nos esta a cercar a todo tempo. Não há pessoa no mundo que não tenha pensado, ou não vá pensar, um dia sequer na vida, sobre aquilo que não é buscado na vida, naquelas questões transcendentais que muito distante estamos das respostas. Qual o sentido de uma vida, se apenas as necessidades da carne prevalecerem: nascer, crescer, trabalhar, alimentar, suprir desejos sociais, envelhecer e morrer. Há, tenho como verdade, algo para além, certamente muito além de apenas isso.

Da mesma forma há uma necessidade, por algo também inexplicável a mim neste momento, de sermos ergastulados na prisão do corpo nesta vida que hoje vivemos. Há um porquê, certamente a nós desconhecidos, dadas as limitações da carne. Não nos é permitido, também, abreviar a experiência pela qual passa a alma nesta prisão corpórea, nisso concordo também com Sócrates e Platão. Temos uma pena a cumprir aqui, e o tempo de partir chegará, não por nossas próprias mãos.

“E quem da prisão, antes do seu tempo devido, buscar se libertar,, amargará nova pena, em novo cárcere, em que a alma infinita se enclausurará. Se assim for, o que nos resta, como corpo finito e alma infinita, nos é senão esperar, e entender o mundo como julgamento da pena que sequer sabemos, limitados que estamos, mas que no fim do hiato se saberá.”

Então, como houve por dizer o próprio Sócrates, aquele que se dedica ao conhecimento não teme a morte, mas da mesma forma, acresço eu, não a deseja. Enquanto vive na prisão, busca torná-la de melhor sorte, tornando-o a casa da potência, manifestando no receptáculo do infinito a plenitude do que nele reside.

“Que não seja o corpo a morada do desejo, que seja o templo da vigilância, consciência que vem d’alma eterna e, por isso, a visita da morte como algo a se temer. Somente a vigilância perseverante, disciplina imortal da alma, permitirá que o tempo, ferrugem mortal do corpo, desgaste as grades da prisão libertando novamente o ser eterno.”

Aquele que teme a morte, ao final, dizia Sócrates, mostra que aquele foi um cultor do efêmero, do corpo, e que nunca buscou na filosofia verdadeira a natureza do que é e do que o cerca. Permitiu-se dominar pelos apetites da carne, sofrer pelos desejos de não ter, de ter e de perder, afastou-se da temperança e da moderação, não tendo buscado a moeda de maior valor na vida: a sabedoria.

Há mim me parece que de fato a alma transcende ao corpo, há lembranças, insights, quase memórias de questões que sequer vivemos neste lapso corporal de prisão atual. Há questões que, sem sabermos o porquê, nos agrada, outras que nos repele, sem sentido aparente. Há em nós inclinações e repúdios próprios do que somos para além da máquina corporal que habitamos, e chego a mesma conclusão que Sócrates de que a alma é imortal por tais fundamentos. A alma se assemelha ao divino, o corpo se assemelha ao mortal, é conclusão mais racional que a alma seja a fagulha que gera todas as ações do corpo. O corpo, sem a alma, é mera carne, não é humano, não o é senão uma lembrança do que foi.

As células continuam ali, os órgãos, os neurônios, tudo na composição da matéria, mas um algo que não se vê não mais está, e do ser humano se têm apenas uma cadáver e nada mais. Ainda que as teorias materialistas da neurociência queiram nos reduzir a processos químico-físicos não é possível, pois há algo que os precede a todos, e este algo intangível é a alma.

Ou o corpo, prisão temporária, domina a alma, ser imortal, ou a alma domestica o corpo, ciente de de si, e foge ao encantamento da prisão. Deixar a alma ser dominada pela carne é permitir a deturpação última dos sentidos, é a prisão na qual está presa a humanidade há tempos imemoriais, em sua grande maioria.

Se prisioneiros da carne, a vida é a dádiva, e a morte que se teme e se evita dia após dia. Se libertos pela consciência da alma, sabemos que a vida é prisão temporária, desafio a se enfrentar, e a morte a libertação, o fim da pena e o regresso à totalidade do ser eterno.

“Que a alma consciente use a potência do corpo domado para a sua breve passagem. Quem deseja o corpo carnal como imortal deseja, como cativo inconsciente da vida, a prisão perpétua da alma. Se assim for, a vida é o carcereiro da alma, e a morte a sua libertadora esperada. O corpo, a casa da potência, o lar dos desejos, nesta morada de contradições em que a alma, sendo cônscia de si e de onde está, saberá por fim ser a velhice a dádiva de seus melhores dias, a aurora anunciada pelos cabelos brancos, pelas rugas e pela sabedoria de uma vida breve e efêmera, que tão logo se avizinha os derradeiros dias de seu cárcere.”

O sábio assim diria, ao ver a sua velhice chegar:

 - O quão me alegram os cabelos brancos, as rugas, as marcas do tempo e cicatrizes de uma longa vida, pois avizinha-se o tempo da liberdade, e já consigo vê-lo em meu horizonte, e minh’alma se alegra, ainda que a mente, presa e cativa, possa sentir alguma tristeza.

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