VIVER EM TRÊS ATOS




 - I - 


Tu ainda vives, caminhas pelo acidentado caminho,

e tudo ainda importas a ti,

impulso mágico do existir, 

ardente calor do ser, vontade de pertencer.

Resplandecente desejo, fecundo porvir: viver.

As areias do tempo fluem entre teus dedos esparsos.

Sentes o súbito desejo homérico?

Vá, navegues em mar desconhecido!

E a sua própria Ítaca um dia voltarás.


Presente que tu sentes, doce página que te preenches,

Prenhe pensamento, canção do existente.

Gleba preciosa que te espera, usurpada pelo passado.

Ânsia por mais um passo, egoísta amor em permanecer.

Trilhando as mesmas ruas do porvir prometido:

viver é crer no amanhã já perdido,

banhado em lágrimas do passado ido.


Vês, ainda têm consciência!

A parte de ti que fala, analisa,

Por pensar digo: existas!

Partícula invisível que diz de todas as partes,

Indizível parte que não sabes onde habita.

Ou sabe se habitará, 

quando em carne não mais existires.


 - II -


No fim nada importará, nem a consciência,

E o fim será tua única e verdadeira morada.

Linha reta de teu ocaso certo.

O acúmulo na vida é vontade cega,

Quando teu futuro certo não enxergas.

Poder, glórias, amarguras e derrotas

efêmeras roupagens que logo estarão rotas.


Morada comum sê-la-á casa: o nada.

Teus pedantes apegos em vida levada, orgulho,

muro de taipa em horizonte haurido,

Fidalgo ou servo, diminutos títulos em vida,

Teu futuro já vejo - abraçado pela terra: corpo putrefato,

poeira na sola dos passos dos que virão.


As tuas memórias também se extinguirão,

Também de nós e até do que se acha infindo, 

Imortalidade: soberano desejo inescapável.

E Cronos, insaciável, devorará até as lembranças,

derrubará a árvore, apagará o livro, levará os filhos.

e tudo mais que um dia foi e que hoje é.

Tudo será como na origem, sob o colo de Érebos.


“Só mais um dia!” – será teu derradeiro pedido.

Alma aquebrantada, partindo,

corpo hirto, frio, sem reação,

mente paralisada, silêncio nirvanico,

Boca emudecida, sem vida,

alma despindo a primeva e derradeira alfaiataria,

lhe negando o medo e a alegria, pois já não és.

Afastado da emergência da vida:

O tempo, mais uma vez, terá vencido.


 - III -


E tu partirás sem nenhuma lágrima tua,

Banhado pelas lágrimas dos que te amaram,

Navegando pelo rio que elas formarão,

E se não houverem lágrimas:

será nas areias do deserto a tua peregrinação.


Sublimação de sofrer invisível,

néctar puro da alma do andante,

toque d´alma em visível carne:

só há lágrimas quando há viver.


Tu lembrarás o que foi,

incontáveis vidas amalgamadas na tua veste carnal,

pequenas vidas inteiras, células,

Tantos nascimentos e mortes em vida, sem saber.

Teu corpo foi túmulo e maternidade,

de inumeráveis partes do teu ser.

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