A morte em vida

 


Há, pois, a necessária descrição de minha morte em vida. Não o faço, contudo, como forma de justificação alguma a quem quer que seja, o faço, no entanto, como compromisso que detenho ainda com o abstrato, mantido pela parte mais íntima de meu ser, aquela intangível parte imaterial, que determina o que sou, hoje, mais do que determina a carne, as vestes, as rugas – meras descrições fugazes que se apagam, dia pós dia, na marcha inevitável do tempo. Meu compromisso é com o perene, e o perene enquanto sei, por não saber do amanhã se também o será. Perenidade é, pois, manifestação do otimismo do ser que acredita no porvir.

  Este espaço no qual escrevo é também o que sou. Essencial se faz que eu aponte tais questões, em sendo aqui o que transborda de minha vida, o que desejo que se revele a estranhos que aqui visitam, que muito certamente nunca verei, vi ou saberei, mas sabem de parte tão essencial a mim. É importante ainda que eu pontue, dado as apresentações, que tudo que se revela de mim aqui é o que é abstrato, nada envolve de todo meu eu, por isso disse transbordante. Neste ser que aqui insemina palavras, em um papel que me serve de útero, transformado em incontáveis zeros e uns que aos que aqui passam se comunicam, acontece a mágica de se transmitir aquilo que abstrato é em mim, àquele aspecto abstrato de vocês que aqui estão.

Dialogamos, sim, diálogo anacrônico, pois sempre escrevo na encruzilhada do tempo presente, mas o faço referente à avenida do que se foi, oras vezes para que seja colhido na avenida do que será.

Descrevo aqui os eventos memoráveis os quais me foram dados, escrevo em alegoria aquilo que a todos nós é comum, meus dedos dedilham fragmentos de luz intensa do infinito, da mesma substância que é o dedilhar de emoções naqueles que leem essas palavras. É, pois, feitiçaria. Nos encantamos com a dádiva de separados sermos um, do mesmo molde, da mesma fonte, com as mesmas interrogações que hora nos fingem ser exclamações. Faço feitiçaria quando escrevo, junto porções em uma panela chamada folha em branco, e nela misturo letras que juntas formam palavras e que transmitem emoções. Certamente não sou o melhor dos feiticeiros que encontrarão no caminho, dentre tantos portentosos mágicos na existência, mas sou o que sou, e transmito o que tenho, dentro do tão curto conhecimento de fórmulas de ajuntamento de letras e de palavras e de frases que transmigram sentimentos.

Quantos não foram os eventos memoráveis que compartilhei aqui, que ressoaram em pessoas que nunca vi. Quantos não foram o compartilhar, em comentários, daqueles que também se dedicaram ao feitiço de comunicar-se aqui. E formamos, agora, que é de alguma forma antes do fim, pelo menos nesta encruzilhada que escrevo, um grimório mágico, um receituário, um livro dedicado ao abstrato.

Nunca houve pretensão alguma de minha parte ao fazê-lo, repito, apenas o fiz por imposição de meu transbordamento. As palavras, teimosas que são, sempre de mim fugiram, e caiam, umas por sobre as outras em folhas que sempre me cercaram. Quando eu via, o que havia fugido não eram só letras, palavras ou frases, eram histórias que de alguma forma deveriam permanecer, pelos menos pelo tempo suficiente para chegar a quem devesse chegar. Sim, o transbordar das palavras representavam a vontade, de cada uma delas, em voar livres, saindo de meu sentir, de minha mente, e chegar na mente de alguém, e misturar-se a pensamentos outros, a copular e a reproduzir-se de alguma forma, tornando-se outros algos que sequer posso cogitar saber.

As vezes me pergunto se alguns destes pensamentos mudaram algo em alguém, permitiram que quem os lia, na encruzilhada do presente que fizeram, alterar parte da caminhada na via do porvir. Sinto, para além de conjecturas de pensamento, que sim, que de tantas e tantas pessoas que, perdidas ou achadas, no meio daquilo que nos uniu em palavras, as adotou por um pequeno tempo, e o fazendo deixaram o porvir se tornar um novo ser. Não há pretensão no que falo, pois as palavras não mais eram minhas, e quando misturadas ao pensamento de outros eram menos de nós dois, elas tinham suas próprias vidas, e caminhos, e talvez, de tão pequena que fossem, sequer eram sentidas as mudanças de direção em que se entregava à magia de lê-las, e assim fazendo, as leva-las consigo. Imagino que como um pequeno ângulo, uma pequena palavra pode mudar todo o rumo de uma reta vida que seguia uma direção, e por isso creio no seu poder.

Foram por meio de palavras de tantos desconhecidos, estranhos, seres que um dia viveram e não mais estão, outros que estão e nunca vi que, adotando e ouvindo as suas palavras pelo portal de minha alma, pude eu mesmo mudar os rumos e direção do que achava ser uma tão reta vida.

Lembrei-me, no primeiro dia de meu exílio, de minha injusta reclusão imposta, da história do próprio velho Juan Matus, quando fora ele mesmo posto à grilhões, em tempos que sequer podemos saber. Todas aquelas palavras, de alguma forma guardadas, fervilharam dentro de mim quando eu mesmo, como ele, estava posto naquela mesma morte em vida.

Desafios cíclicos, palavras guardadas como munição, armamento de um guerreiro, o conhecimento, permitindo enfrentar qualquer situação, e assim o fiz. Escudos, mal sabemos quando os erguemos, e quando deles precisaremos, mas quando enfrentada a situação tenho por certo, todos saberão.

Naquele dia, bem me lembro, em minha garagem tinha caído um pássaro preto, não sei bem de qual espécie, mas ali estava. Meu companheiro cão latia, e o tentava devorar. Fui levado por um estalo a levantar-me do que estava fazendo, e lembro o que estava fazendo, e peguei o pássaro. Lembro-me de ter sussurrado no ouvido do pássaro que ele viveria, e mais uma vez voaria, o fiz por mero impulso, não havia nada de presunção de mim em achar que o curaria, eu apenas sabia. O levei a um arbusto alto, dei-lhe água com açúcar, e o deixei ser guiado por seu próprio poder pessoal. Eu sentia que ele o tinha, de alguma forma e em alguma quantidade que o permitiria voar mais uma vez.

O dia se passou sem sobressalto, mas eu sentia dentro de mim uma energia fervilhar, como se o mundo em breve fosse acabar, e como se eu estivesse no máximo de energia para suportar tal destruição. Lembro que preparava um material para uma apresentação de um texto de Lewis: “Deus no banco dos réus”.

No dia seguinte acordei com o piar de um pássaro em frente ao meu quarto, em um fio de energia. Ele me olhava, eu sabia, para além de racionalizações. Senti que era o pássaro que eu tinha salvado dos dentes de meu cão, e ele me dizia:  - gratidão!

A mesma energia me invadia, até uma certa agonia, segui as minhas rotinas diárias até que uma música me pegou, mais uma vez palavras, e com as palavras de Zé Ramalho cantei “Oh, eu não sei se eram os antigos que diziam / Em seus papiros Papillon já me dizia / Que nas torturas toda carne se trai”, cantei junto e em tom alto até chamar o Padre Cíço para me benzer, e ainda que sem tanta fé, ali senti devoção.

Eis que ao fim da tarde veio o aviso, eu seria preso.

O anúncio me jogou em um precipício, e como imagino a queda de um precipício foi o receber desta notícia. Senti como se estivesse caindo há um tempo, um silêncio extremo, um vazio infinito, éramos eu e o abismo, e tudo mais no mundo havia ruído. Meu corpo seguia, eu sabia, sem a minha direção, era um objeto docilizado na mão do Estado, que agora o guiava em procedimentos mil que sequer minha alma queria participar, ou não podia, visto a queda em que estávamos nós imersos.

Eu não tinha asas, como o pássaro, não poderia voar, aguardava o impacto de no fim do abismo uma hora chegar, e não cheguei, até hoje, até agora, até aqui, na encruzilhada em que me encontro, no fim eu não cheguei.

E por tanto e tanto tempo em queda, uma hora não mais entendi, se estava caindo ou se tinha asas e havia começado a voar.

Sobreveio à prisão um tipo de morte especial, aquela que vivemos no século de nossa existência, parte do Zeitgest que nos é próprio. A cada dia me matavam mais o ser social que outrora havia sido. Mortes revividas e após as mortes o revolver o cadáver putrefato, escancarado com vísceras à mostra em praça pública, matando dia após dia o ego que talvez no princípio resistia, até nada mais sobrar.

Em minha nova morada me encontrei mais adjacente de mim, talvez como nunca fui ou serei novamente, e tive que dedilhar dentro dos fios que em mim se encerravam, e naqueles que me cercavam, o alinhamento para a minha própria sobrevivência. Pois sim, ainda havia vida, como hoje ainda há, para mim e para todos que me leem, embaixo de todo cobertor e roupas que nos escondem, e ali, eu estava nu.

Mas nu me reencontrei. Busquei, a cada dia dos longos dias que se seguiram, em meio a todas as estações, me esforçar ao máximo em defender-me no campo que me cabia, de conhecimento, acreditando que me agarrar aquilo seria todo o possível. Eu deveria, sozinho, chegar ao ponto culminante do conhecimento, e dele adviria a minha libertação. Eu não buscava mais companhia, restringi meu círculo ao mínimo, tinha me tornado indisponível e aproveitando-me da contingência, rejeitava a maioria das visitas, aos poucos me apagando. Eu mirava os céus da liberdade, já tendo, ao longo da caminhada, cor e forma indefinida, havia mudado desde minha essência perceptiva. E tendo obliterado toda a raiva dentro de mim, pela situação que passava, entendi que a suavidade das palavras era o resultado esperado. Eu era sem forma, ego sem existência, página em branco, composta de palavras suaves.

De alguma forma eu tinha me entregue ao poder que detinha dentro de mim, e que externamente rege ao nosso destino, como eu tinha sussurrado ao passado naquele dia que precedeu o meu exílio, algo sussurrara em meus ouvidos também. Já não havia nada que me prendesse no mundo social, pois aquela cola que a tudo liga, o ego e a história pessoal, tinha virado cacos espalhados no chão do passado. Não havia mais medo, estando eu diante da morte, nada mais poderia me ocorrer. Estava livre de tantas amarras, preso eu era mais livre que a maioria das pessoas livres.

“No mundo em contínua transição, cinquenta anos e uma vida, são meros sonho e ilusão.” Oda Nobunaga já dizia, e na mágica das palavras, eu o sentia.

Gentileza, foi a forma como sobrevivi com aqueles que convivia, carcereiros, outros em igual situação, era essa a primeira técnica a ser aprendida. Paciência me fazia suportar ao tempo, que ali parecia correr lentamente, semanas eram como anos, e meses eram como décadas, enquanto o tempo lá fora parecia fluir como um relâmpago. Quiçá a consciência de viver a cada dia desperto, livre das dispersões do cotidiano, tivessem me dado como dádiva a paciência de ali estar. A esperteza era relativa ao uso de meu tempo, e ao sorver das experiências com os demais que me acercavam, de cada experiência eu extraía conhecimento, sentia a voz do próprio universo me falar, e isso me permitia trilhar um caminho suave, no qual estrategicamente fui montando a estratégia de minha liberdade. A implacabilidade era uma objetividade que era decorrência do abandono do ego, morto ao entrar ali, e massacrado por tantos e tantos dias em praça pública, havia uma forma afiada de mim mesmo naqueles dias, me permitindo chegar o máximo aprimoramento de meu corpo, mente, espírito, dentro do pouco que tinha à minha disposição, aos olhos do observador. Olhando de minha parte eu detinha tudo, absolutamente tudo que precisava para sobreviver.

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