A dádiva de poder morrer

 



É certo que me chega a hora final, e é algo que sempre foi certo, desde a aurora distante de meus primeiros dias. Sempre lá, sempre ela, sempre a morte se avizinha, e me faz lembrar, dia após dia, a dádiva de alegria que me dá, e ando me diz: é teu mais um dia.

 

Não há o que me impila mais a viver que vê-la, todo dia, desde que aprendi a reconhecê-la. Antes não sabia, e vivia, dia após dia, perdido sem saber de mim, de ser mortal, e da importância de cada dia.

 

Se não fosse o ímpeto da morte, se não fossem as finitude a da vida, para que prazer viveria, se tudo poderia amanhã, e todo o gozo da vida se perderia.

 

Imortal aquele triste ser, que por eterno viver, não sabe a beleza de um poema sintetizar, de um pôr do sol apreciar, de um beijo gozar. Nada, se não impelido pela própria morte, teria o gosto do prazer de se viver.

 

E saber ser o caminho, de pequenos pingos, gotas de alegria em cada passo, isso sim o necessário, me livra da dor de buscar sentido em algo, em um amanhã, ou algum lugar para chegar. Não, não há onde chegar, o que se tornar, o que buscar, senão o agora de ser, se sorver, de entender ser hoje o tudo único existente, garantido e possível, sendo miragem todo o mais que se busca saber.

 

Sou nada e hoje me reconheço, naquilo que temporariamente sou, buscar aqui é agora ser feliz e ser tudo que se pode nesta instante tão breve e frugal, torcendo por, após sorver tudo, ter mais um passo a seguir, e outro, sem me perder em sentidos abstratos onde não há. 

 

A cada busca de sentido perco o prazer de viver, a cada esperança depositada no amanhã perco meu hoje único, e pareço chacotar os presentes que a morte me dá, dia após dia, querendo de mim apenas a vida viver…

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