O SER É O NADA QUE É TUDO
De alguma forma, nós fomos lançados ao mundo — jogados, por assim dizer — sem que estivéssemos previamente preparados. Como seres humanos, chegamos ao mundo absolutamente vazios de qualquer coisa que se possa chamar “natureza” e que se permita definir, em essência. Somos, externamente, obviamente definidos, biologicamente marcados com características próprias. Internamente, como o ser, não somos definição alguma.
Vou tentar iniciar essa reflexão com uma analogia a outros seres. Quando um cão nasce, ele já traz consigo seus instintos primários. Logo nos primeiros meses, ele já se comporta como um cão em sua integralidade. O cão não é apenas definido externamente em suas características próprias, mas também internamente. Do cão tudo se sabe o que poderá ser.
O ser humano, por outro lado, não. Se aparentemente, no âmbito externo, é igual ao cão, e muito se sabe pelas ontologias regionais (ciências), pouco se sabe de seu espírito, do que ele é, porquanto, como defendo, ele nada é além de um aberto as possibilidades todas.
A propósito da analogia com cães, nas velhas histórias que temos, na literatura médica e que até inspirou histórias conhecidas, como a de Tarzan ou de Mogli, eis a presença de seres humanos que, tendo diante de si apresentadas possibilidades de serem tais e quais macacos ou lobos, como eles se comportaram. A tomada de consciência no ser absolutamente aberto do homem, portanto, pode fazê-lo até mesmo um outro ser, não em aparência, mas em essência. Aqueles relatos científicos de crianças abandonadas e criadas por animais, apontam para seres humanos que pensavam, agiam e se tinham como se animais fossem, que não o animal humano.
Isso ilustra que nós, humanos, somos apenas jogados no mundo sem nenhuma prévia característica do espírito, a partir desse lançamento, inicia-se uma primeira etapa: a tomada de consciência. Adquirimos a consciência de que somos seres lançados, jogados, mas pouco entendemos, na maior parte da vida, quanto a sermos seres de abertura, e talvez essa seja a parte mais desafiadora da nossa caminhada existencial.
Antes de termos consciência de que somos seres de abertura e possibilidade, já estamos sendo moldados. Outros — os pais, a primeira escola, a televisão, amigos, inimigos, conhecidos, a igreja que nos inserem, os fenômenos culturais em geral, os livros que nos “leem” — já atuaram sobre nós nos moldando a algo, que aqueles mais próximos chamam de nós. Ou seja, somos moldados antes mesmo de sabermos que somos possibilidade.
E quando nos tornamos possibilidade, viva, somos puro silêncio, antes de nos induzirem ao primeiro choro, e depois darem o primeiro nome. E então, dia após dia as palavras irão inundar a mente que nasceu silenciosa, dentro de um ser que é nada e que intenciona ser algo que não sabe o quê.
Percebam o que quero argumentar. Um ser humano é lançado, jogado no mundo, parido. Antes mesmo de sê-lo já, na maior parte das vezes, já se definiu a vida que ele irá ter. Os pais, já em projetos, dizem do nome, o primeiro grilhão, dizem do que acreditam que o novo ser será, definem e projetam escolas para estudar, religião para batizar, histórias que irão ler, caminhos que ira conhecer, os certos e os errados que lhe dirão para saber. Tentam, no indefinido lançado, já definir, mas esquecem de pensar em ensinar que, aquele ser lançado sem querer, sem nada pedir, deve ter como primeiro passo o entendimento de que é apenas um nada, um vazio pronto para ser preenchido, quando e com o quê ele mesmo quiser.
E isso, nesse primeiro momento, nos causa confusão, e é absolutamente natural, dada a forma de construção de algo efêmero que se finge ser sólido e que nos ensinam que deve ser defendido, reforçado e ressaltado como sendo o “eu”.
Há uma sobreposição entre aquilo que fomos moldados a ser, pelas projeções de expectativas todas que nos são depositadas, e aquilo que somos de fato: um ser lançado no mundo que se lança, a todo tempo, ao futuro — o nada. Entender esse “nada” talvez seja o exercício mais árduo de todos, porque ele remete à desconstrução. E essa desconstrução só acontece, quando acontece, na etapa mais adulta do ser. Aliás, é importante ressaltar: raramente acontece.
O olhar para trás é algo, nos tempos atuais, e desde o fim da modernidade, algo comum nas sociedades. Olhar para trás, por meio de um guia, um psicólogo ou um psicanalista, para entender tudo aquilo que se construiu na pessoa, e entender a origem dos problemas que afetam a pessoa. Uma busca que deve, no ideal, e assim considero, chegar ao nada, ao apagamento da solidez que se firmou o “eu” imposto pelos “outros”.
Em outros ramos, como por exemplo no existencialismo místico de Carlos Castaneda, a prática é chamada de “recapitulação”: um caminho de retorno até a origem. É na origem que nos descobrimos como sendo nada. E, ao nos descobrirmos como nada, percebemos que tudo o que disseram que somos são apenas descrições — construções — dentro de um ser de possibilidades, que somos nós. É como o texto que você está lendo, algo que pode ser apagado, algo que pode ser modificado, algo que decorre de uma construção intangível e que se quer pretender tangível.
Mas nada disso é propriamente nosso. Desde o evento da nominação, e naquelas coisas todas que se seguiram, começaram a moldar-nos em algo que diziam ser o “eu”, e que ensinaram que deveria ser defendido a todo custo, que deveria estar acima de todo o resto, que deveria diferenciar-se e entender-se como mais especial. Mas eram apenas palavras, desde a palavra primeira do nome. Cada construção do passado molda o presente e o futuro daquele que acredita que algo que chama de “eu” é na verdade seu.
E esse programa de construção do “eu”, de tão complexo, é absolutamente individual, porque o programa de construção é tão complexo quanto são infinitas as possibilidades humanas, sendo o ser infinito de possibilidades são também as construções. Ainda que duas pessoas sejam moldadas com os mesmos fatores externos, suas peculiaridades próprias biológicas (essas identificáveis) moldarão de forma diversa o que são. Somos moldáveis, sim, mas o processo de moldagem não é exato.
Isso se dá porque, ao sermos lançados no mundo, já trazemos certas características — falo aqui de ontologias regionais. Uns percebem o mundo de uma maneira, outros de outra. Uns têm maior propensão para uma área, outros para outra. Sim, somos moldados socialmente, mas antes disso fomos moldados geneticamente, por um DNA que define certas facilidades e dificuldades, e ainda somos alimentados pela “programação” de complexas combinações de outros “eus”, que dificilmente podem se repetir em qualidade, número e intensidade.
E sim, podem querer me refutar quanto a ausência de natureza quando falo das facilidades, dificuldades inerentes, mas não o são quanto ao espírito, mas quanto à biologia que permite a compreensão e retenção dos ensinamentos todos que comporão o “eu”. Digo que alguns, por fatores genéticos, reterão mais alguns conhecimentos, e menos outros, verão melhor, ou pior, escutarão com mais qualidade ou não. E mesmo assim isso não significa a existência de uma natureza humana, no que se refere ao seu ser. O ser humano pode lutar contra suas facilidades também, remar a favor das facilidades, ou nada disso fazer. Alguém pode nascer com propensão à cálculos matemáticos, mas desejar e se guiar para trabalhar com poesia. E, ainda que não seja o maior dos poetas, poderá se realizar naquilo que quer. Isso é característico do ser humano: a abertura.
Mas esse abrir-se para as possibilidades é algo raro. Entender-se como abertura, como possibilidade, como um conjunto de páginas em branco diante do porvir — essa é talvez a característica mais própria do ser humano.O poder ser.
O “eu”, por sua vez é, de alguma forma, sempre uma projeção.
É importante compreendermos isso para entender que o exercício social de “formação” essencialmente é um exercício de apagamento: oculta-se do ser o que ele é de fato — o nada somado à abertura de poder ser tudo. Isso parece paradoxal, mas não é.
O nada só pode ser tudo na medida em que compreende que tudo o que acha que é seu “eu” pode ser alterado e reconstruído, quantas e tantas vezes até o seu destino final e certo. Aliás, como outros tantos já disseram, e por isso não digo tanto, o certo no homem é que é um ser que caminha para a morte, sem que isso defina o quando ocorrerá, certamente define que ocorrerá.
O que quero dizer com isso?
Faço aqui uma analogia para facilitar: imagine um ser humano como um copo. Qualquer coisa pode ser colocada dentro de um copo. Se o ser humano fosse esse copo, ele nasceria como um recipiente vazio, capaz de conter qualquer coisa. Mas quem o preenche, em seus primeiros momentos, são os outros — aqueles ao redor, porque ele ainda não se reconhece como um copo ou mesmo como um copo vazio, ele apenas entende-se como nada. Se o ser humano, nascido em uma família de “copos de suco”, for preenchido com suco, talvez jamais descubra que poderia conter água, refrigerante, óleo, areia ou qualquer outra substância. Ele só saberá disso se conseguir se esvaziar daquilo que lhe foi colocado primeiro, e se entender que sua natureza é o espaço vazio apto a abrigar algo qualquer. Entender-se nada.
É isso que estou tentando explicar: o ser humano só compreende seu vasto caráter de possibilidade quando se esvazia daquilo que pensa ser — e que, na verdade, são apenas projeções e preenchimentos feitos por outros, de características e coisas dos outros, que por sua vez, foram preenchidas por outros antes deles, e outros e outros...
O primeiro passo do ser humano, então, é ser preenchido com as possibilidades dos outros. Se tivéssemos uma cultura pautada na libertação do ser e na exploração do seu verdadeiro potencial — o de ser nada e poder ser tudo — talvez os primeiros ensinamentos fossem justamente no sentido de explicar àquele que está adquirindo consciência que ele é, de fato, nada. E que tudo o que nele for colocado deve ser entendido como provisório, até que se conheça. Para que possa, então, se esvaziar e completar-se com aquilo que verdadeiramente o satisfaz.
Voltando à analogia: o copo nascido numa família de sucos será preenchido com suco. Mas, ao se compreender, poderá esvaziar-se e encher-se do que lhe aprouver. Poderá, inclusive, continuar sendo preenchido com suco — por escolha própria. Porque no ser humano não há determinação, há apenas possibilidade.
Entretanto, o que temos é um depósito de coisas — não o reconhecimento do nada que somos após sermos lançados no mundo. E aqueles que nos lançaram — nossos genitores, os primeiros educadores — apresentam essas coisas como sendo o que somos, antecipando também o que devemos ser. Esse talvez seja o grande problema dos dilemas sociais contemporâneos e de muitos dramas mentais — como a depressão, frustrações, ansiedade e coisas mais. Ensinam-nos a reconhecer o “eu” como tudo aquilo que é de outros, e não nossas escolhas próprias. E quando nos dizem poder fazer escolha, o “eu” já está criado, e o espaço ocupado, não havendo mais muito o que preencher.
Porque, muitas vezes, esse recipiente aberto que somos não se sente confortável com aquilo que foi colocado em seu interior. E o preenchimento a que me refiro abrange tudo: desde as opções mais básicas — desejos, orientações sexuais, identificações físicas — até aspectos mais amplos, como profissão, relações afetivas, concepções de felicidade, e por aí vai.
Assim, o recipiente humano, que era o nada e que poderia ser tudo, quando é cheio de algo que não o satisfaz, sofre. Surge o incômodo, a frustração, a dor. Porque não há a compreensão de que ele pode se esvaziar. Aquilo que deveria completá-lo torna-se um fardo que precisa carregar.
Ser cheio do alheio é fardo, ser cheio do que se escolhe para si é completude. Mas em ambos os casos, a natureza do ser continua sendo o vazio que pode se preencher de tudo.
E aqui entra algo muito importante: Castaneda chamava isso de “o caminho do coração”, e se refere talvez à essa sensação de completude que disse.
Percebo que esse caminho, de completude, do coração, consiste na compreensão de que somos nada; de que tudo o que colocamos dentro de nós não é propriamente nosso.
Mas, ainda assim, compreendendo que algo deve ser posto — porque somos possibilidade — devemos colocar aquilo que não seja um fardo, mas sim algo que nos complete. E esse completar é o que dá acalento ao coração.
Nos paradoxos humanos da vida, o reconhecimento do nada é o verdadeiro poder. Aproximar-se a nada ser é a redução das expectativas do porvir, não a estagnação, mas a completude em si, o retorno ao nascimento e a união com o próprio fim. O que brota além das palavras todas ditas e o que sobra além das definições todas criadas é o que é o ser verdadeiro. A verdade está no não pensar, na suspensão do fluxo iniciado no nome dado, e encerrado no suspiro último, e essa essência é de todo não dita, mas é o poder de tudo poder se tornar, tudo poder ser.
Volto ao princípio: o ser é o nada que é tudo.
O ser humano, apenas quando é nada, detém o poder de tudo ser.
E sabendo-se assim, se essa escolha for nada, será compreensível, e intensamente humano, no vazio que nascemos sendo, e que ao final voltaremos a ser.
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