O mundo além da visão - A arte da contemplação


"Este mundo tornou-se cego,
poucos aqui veem com clareza
como aves que escapam da rede,
poucos são os que vão aos céus."
(Darmapada)

Andei dedilhando as linhas do infinito hoje em busca de alguma coisa que me chama no sonhar. Tenho tido grandes aventuras naquele reino, encontrado pessoas, lembranças, tido marcantes experiências energéticas, mas não consigo juntar os pontos do tapete que o infinito está a fiar em minha caminhada. Agora mesmo olho a lua subir pelo céu, em sua magnífica jornada, ela está em meio a tantas nuvens, como se tímida saísse do meio de um cobertor aconchegante, assim como eu saio do meio de minhas cobertas todos os dias. Apesar de não tocar ou ser tocada pelas nuvens, aos nosso olhos é um magnífico espetáculo, um jogo de percepção que fatalmente nos seduz.

Durante estes dias que se seguiram encontrei com seres estranhos que haviam de me dar alguma mensagem, não sei, mas sinto que algo me escapa pelas mãos, alguma coisa me foge, e mesmo assim permaneço sentindo que algo grande está para acontecer, sinto em minhas entranhas, algo visceral, alguma mudança em termos energéticos acontecerá. Me lembro agora da lembrança de um poema que me passa a frente nas minhas manhãs de caminhada, algo assim:

Não é o caminho que é duro,
É a insegurança de quem caminha,
Não existe um caminho macio,
Existe a leveza de uma caminhada.
Não existem caminhos tortuosos,
Apenas escolhas mal realizadas.
São todos caminhos,
São apenas passos em uma jornada.

Não passa de um tolo jogo de palavras, como todo jogo o é, mas talvez signifique para mim mais do que eu possa reconhecer agora lendo estas simples palavras. Existe ao certo uma certa energia que irradia nos tempos da lua cheia, existe certamente um excedente de energia nos dias que precedem a data de nosso nascimento, tudo se soma, tudo se completa, sempre como um jogo infinito do próprio espírito em conjunto com nossa tão magistral caminhada. Toda caminhada é mágica, toda ela é especial, agora a lua já se livrou dos cobertores e caminha mais uma vez em sua jornada, para alguns tola caminhada, para outros mágica jornada, não importa a visão, não importa o pensamento, não importa o poema ela sempre fará a sua jornada, como se nada mais importasse a ela.

Encontrei-me em diversas enrascadas no sonhar, pessoas diferentes, reinos distantes, e o pior é que nada me assustava, eu estava cheio de poder, de uma vontade imensa de me arriscar, de buscar por algo que eu não entendia bem o que seria, mas que me aguardava na imensidão da segunda atenção. No mundo desperto a voz me dizia com frequência que era preciso eu realizar a tarefa de contemplar, e com a tarefa eu exercitaria os meus “músculos” da atenção sonhadora, mas de alguma forma eu estava a todo tempo sendo impedido de realizar esse exercício.

Venho procurando escrever sobre a contemplação há muito tempo, mas de alguma forma, por algum motivo não consegui me concentrar ainda nesta tarefa, essencial para o exercício pleno do sonhar e da entrada na segunda atenção. Inicialmente o que seria a contemplação? È um exercício que em sua essência é o não fazer de olhar, geralmente, com a efemeridade que levamos a nossa vida, apenas olhamos de relance os objetos, sem nos concentrarmos realmente neles. Dividimos o ver com o pensar, com o escutar, com o sentir, devaneamos no exercício mais simples que poderia existir, o exercício de contemplar.

Muito recentemente assisti a um documentário que falava sobre a atenção humana, o quão ela é falha, e quanto perdemos do mundo por não controlarmos efetivamente a nossa atenção. A contemplação é um exercício precioso para as nossas vidas, ele se bastaria por si só, mas é além de tudo um exercício magnífico para os guerreiros que querem se aventurar na segunda atenção. É a chave da porta que se abre para a segunda atenção, como todo não fazer, é um exercício que em si quebra as amarras da primeira atenção e do primeiro círculo de poder, ou seja, nos faz parar o mundo da forma que o conhecemos ordinariamente.

A contemplação é o exercício de fixar a visão, ele acontece de forma simples, bem como são todas as coisas no caminho do guerreiro. Fixamos a visão em alguma coisa, calamos o nosso diálogo interno e então somos levados a um mundo novo, a segunda atenção. É um exercício magnífico, uma porta que se escancara a nossa frente, tão poderosa e mágica que só podia ser guardada com a mais magnífica das chaves que já se pode ver, a simplicidade. Nunca pensamos que segredos maravilhosos estão guardados em nada simples, imaginamos sempre a complexidade sendo a predecessora de qualquer mistério, mas a todo momento me vejo fascinado quando entendo que na simplicidade do caminho está a complexidade das descobertas. Obviamente a única coisa exigida é a disciplina do guerreiro, para se acostumar e conseguir seguir os passos para a abertura desta porta, mas este é um preço relativamente pequeno frente a maravilha do exercício.

Estava me lembrando do livro “O segundo Cìrculo do Poder”, lembrava vagamente de uma parte onde era ditado os caminhos da contemplação pela Gorda ao Nagual Castaneda, segundo o que fora preconizado por Don juan. Segue abaixo o que diz o livro:

A primeira coisa que o nagual fez foi pôr uma folha seca ao solo e mandar que eu olhasse para ela durante horas. Todos os dias ele me trazia uma folha seca e a colocava na minha frente. A princípio, pensei que fosse a mesma folha que ele guardava de um dia para o outro, mas depois notei que as folhas eram diferentes. O nagual disse que quando compreendemos isso, não estamos mais olhando, e sim contemplando.”
“O nagual disse que contemplar as folhas fortalece a segunda atenção. Se você contemplar um monte de folhas durante horas, como costumava mandar-se fazer, os seus pensamentos se aquietam. Sem pensamentos a atenção do tonal se enfraquece e de repente a sua segunda atenção agarra-se as folhas e elas se tornam outra coisa. O nagual dizia que o momento em que a segunda atenção se agarra a alguma coisa significa ‘parar o mundo’. E isso é certo, o mundo para.  (CASTANEDA, Carlos. O segundo círculo do poder, 1977, p.237)

Com essa breve explicação La Gorda introduzia o assunto ao mundo ocidental, era mais uma barreira de segredos milenares quebrado pelo novo Nagual. Como eu havia dito, a contemplação consiste no exercício de paciência e disciplina, é apenas analisar um objeto, com paciência, aquietando a mente até que a atenção cotidiana desapareça. Segundo os ensinamentos Budistas, existem os candas, que são os conjuntos da vinculações da existência, ou seja, o que compõem o “eu” aparente, o eu ilusório, todos eles são, em essência a vinculação dos cinco sentidos com o mundo que percebemos, eles se dividem em:

Canda da matéria: os cinco sentidos, a mente e todos os objetos tangíveis;
Canda das sensações: sensações tidas através dos sentidos, físicas e mentais;
Canda das percepções: a interação entre os sentidos e o mundo externo;
Canda das elaborações mentais: idéias, pensamentos e sentimentos;
Canda da consciência: formada pelos conjuntos anteriores.

(GARCIA, Fernando Cacciatore. Darmapada, introdução. 2009. P. 23)

Como vocês podem ver, todo o mundo, a visão de mundo que temos é formada por uma interação entre a nossa energia e a nossa mente, que vê a manifestação do mundo através dos sentidos, de forma que podemos tranquilamente dizer que os nossos sentidos traduzem o mundo, mas tudo isso acontece através da mente. Toda e qualquer descrição do mundo, que façamos de forma ordinária, sofre a interferência da mente, porquanto podemos dizer que tudo que vemos, sentimos ou pensamos do mundo não é nada mais que um processo mental. Einstein já dizia que o nosso mundo é uma ilusão tão sólida que nem conseguimos perceber, e essa é a magia que fazemos, transformamos os dados sensoriais de forma a interpretá-los todos da mesma forma, pois todos temos um mesmo professor e todos aprendemos desde cedo a acreditar em nossa mente social, uma mente que de alguma forma nos faz todos iguais.

A passagem acima do livro de Castaneda mostra um exercício em que utilizamos o sentido de forma a sobrecarregar a mente social. Desta forma, contemplando um só objeto, deixando a mente silenciar-se, teremos a interpretação do mundo, mais especificamente do objeto que estamos contemplando sem a interferência da mente, sem a mente social, simplesmente “paramos o mundo”, desligamos a mente, e interpretamos as coisa mais diretamente, sem a interferência de nosso opressor círculo de interpretações sociais. Realmente caros guerreiros, desta forma começamos a caminhar mais próximo de ver energia diretamente, ver sem interpretações, essa é a porta para o infinito e a liberdade da percepção. Não precisamos contemplar folhas, qualquer ítem serve ao propósito, a contemplação de folhas era feita, pois o velho nagual dizia que elas estariam sempre a disposição para os contempladores.

Tudo o que os toltecas fazem é muito simples. O nagual disse que para prender a nossa segunda atenção bastava tentar e tentar.” Nestas palavras La Gorda finalizava a sua explicação a Castaneda sobre a contemplação.

Outro detalhe importante que acho bom frisar é a ordem de contemplação pela complexidade dos itens. Cabe ressaltar aqui que encontramos coisas bizarras ao contemplar, então é bom que sigamos alguns passos e não tentemos contemplar qualquer coisa para não nos assustarmos, isso até que peguemos a prática no exercício. Quando fazemos os exercícios de contemplação normalmente sentimos uma sonolência muito grande, isso é típico quando estamos chegando em um estado de silêncio interior, não há problema em cair no sono, mas é um desperdício de oportunidade. Quando lutamos contra o sono, depois de um pequeno tempo atingimos um estado de alteração mental, somos sugados para a cena algumas vezes, noutras a cena se modifica completamente. Existem duas coisa que gosto, particularmente de contemplar, são as luzes e as árvores. As primeiras parecem nos energizar, nos levar a um estado de silêncio duradouro onde parecemos flutuar. As árvores nos mostram imagens, segredos, nos contam histórias mágicas, são como irmãs para nós.

Na sequência, o que o velho Nagual recomendava era a contemplação nesta ordem: plantinhas (não as de poder, as comuns), as árvores, criaturas vivas em movimento (insetos são recomendados), as pedras, fumaça, nuvens, nevoeiro, tempestades, raios, o sol. Cada qual tem a sua hora de contemplação. Particularmente só contemplei plantas, árvores, sombras, nuvens e estrelas. Os efeitos que percebi mais intensos foram nas árvores. As nuvens servem bem para acalmar a mente, tirar as tensões do dia a dia. Contemplar o sol merece um capítulo a parte, serve para tirarmos energia, nos fortalecermos, exige um passe especial para isso e requer cuidado, só deve ser feito no início e final da tarde. Contemplar as árvores segundo o livro deve ser feito de preferência ao meio dia, igual as pedras. Contudo sempre tive bons resultados no fim do dia e no começo da noite, uma hora sublime para contemplar as nossas irmãs.

No final das contas amigos, o objetivo da contemplação é o mesmo que qualquer outro exercício no caminho, suspender o exercício da mente e entrar em outro reino da atenção. Mas percebam que este exercício em especial é uma ferramenta magnífica de fortalecimento da atenção sonhadora.

Intento aos caminhantes.

P.S.: Coloquei alguns links a disposição na barra lateral direita do blog, espero que isso ajude aos caminhantes. Com o tempo disponibilizarei novos títulos para a degustação dos que tem o espírito sedento por conhecimento e mais ainda para os que tem a energia ávara por ação.

Comentários

  1. As técnicas de contemplação são utilizadas para nos ajudar a romper a certeza de que este mundo é um mundo de objetos. Mirar fixamente está estruturado para romper a tendencia da percepção envolta na subjetividade do mundo ou presa aos padrões da ordem social .

    Podemos mirar fixamente a areia, as pedras, as folhas...Podemos observar as árvores sempre e quando não estivermos de mau humor . Nesse caso é melhor mirar o horizonte ou o mar . O oceano é sufcientemente vasto para absorver esses sentimentos . O método utilizado pela velha Florinda consistia em dar rápidas olhadas, escolhendo coisas que possivelmente não pertenciam aquele local em particular , para sobrecarregar seu campo visual . Pode-se também fazer uma observação de varredura, de 360 graus ou , alternativamente, olhar para cima e para baixo.
    Abraços Hermanos
    Dárion 09:12 10/10/2011
    * * *

    Podemos observar as folhas, perfilando-as ou contando-as . Isto pode ocasionar uma mudança abrupta que façam as folhas desaparecerem, ao substituir o fundo por um primeiro plano . Esta é uma técnica para romper nosso padrão de percepção e para intentarmos perceber a energia diretamente .

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  2. Contemplar anda junto com sonhar. Contemplar serve para concentrarmos nossa atenção sonhadora.
    Abraços
    Dárion
    In lak ech ala Kin
    * * *

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