O apagar de uma história




Existe uma espécie rara que hoje me interessa. Não por motivos óbvios que remeteriam-se ao meu ego, a escolhas ditadas pelo que sou hoje, e sim ditadas pelo que pretendo ser um dia, amanhã, depois quem sabe. Queria que meus amigos me desculpassem se hoje me escondo por entre uma névoa, auto-recluso em minhas meditações, indagações, devaneios e palavras, que transbordam de minha energia a medida que caminho a minha caminhada. Sinto hoje muito coisa mudar em minha vida, conversas, interesses, ambientes que me disponho a estar e até a própria realidade, antes tão certa e dura agora se desfaz como um sonho em que acabo de acordar.

Sei que toda a composição de uma pessoa normal se faz a medida de seus relacionamentos, de suas vivências, de seu passado, mas quem disse que quero me ater a normalidade? Hoje me pergunto constantemente o valor que a normalidade teria em minha vida, na vida de qualquer pessoa que fosse, mas quero me ater a minhas impressões, para não ter que começar afazer inevitáveis comparações. Já vi pessoas que passaram a vida em um piscar de olhos, e no seu leito de morte, segundos antes da partida, conseguiram em um passe de mágica ver o quão vã foram as suas buscas. Me vi em igual estágio ultimamente, mas não no fim de meus dias nessa Terra, reolhando e recontando os passos que dei desde que o ventre de minha mãe deixei. Conto uma coisa a vocês colegas, não vivi nada além de repetições monótonas, buscas sem sentido, repetições de fragmentos das vidas de meus pais, amigos, parentes, ídolos, sonhando o sonho de outros, vivendo o compromisso de uma sociedade que sequer ajudei a criar, que sequer compartilho o intento de que permaneça viva. Talvez os dias que eu tenha vivido intensamente, vivido uma busca real tenha se resumido ao período de minha morte, o início do assassinato do meu antigo eu. E a morte do nosso eu começa apenas com a constatação plena de duas coisas simples, uma, que vamos morrer um dia, e outra, que nada vivemos ainda, nada de real, nada de factual, nada com essência, nada com consistência.

Me atirei em um canto recluso de todo o mundo. Assumi um papel, ou vários papéis, um para o trabalho, outro para os estudos, outro para os poucos amigos que me restam, e um tanto pequeno para os amigos novos que agora começo a ter. São associações, apenas associações, e para cada uma tenho que dar a minha parcela de representação teatral, enquanto a verdadeira face tenho que guardar aos poucos que chegam a me compreender. Não me interessam mais os sonhos de poder, de dinheiro, de riqueza, de manutenção do sistema social burro e falido em que vivemos, mas como falar isso para meus amigos? Os poucos que restam me deixariam, então mascaro a minha real busca em conversas vãs, em lamentações inúteis, em parlatórios sobre sonhos que eu bem conheço de meu antigo eu, que em parte ainda é vivo pois é parte desse mundo que me insiro. Tiro lições maravilhosas de espreita, me saboto em minhas pequenas mentiras, em meus pequenos devaneios, vez ou outra me contradigo, sou pego em conversas que não se encaixam, finjo meu pesar, finjo minha vergonha, mas sorrio por dentro a vitória de minha desconstrução.

Sou, somos, serão, todo iguais, todos dessa grande nação, até que comecemos a contestar o que vemos, o que sentimos, o que buscamos em nossas vidas. Contestar, sentir muito mais do que pensar, testar e retestar as formas de ver, de sentir o mundo que nos cerca, recomeçar, se refazer, mudar, descobrir que somos para os outros apenas uma descrição, apenas uma folha amontoada de palavras, tão vazias quanto a nossa própria descrição e mais nada. Como mudar? Tão simples quanto recomeçar um texto, quanto apagar e redigitar, quantas vezes forem necessárias para perceber que não somos nada além de uma folha em branco, pronta para receber qualquer texto que quisermos escrever, a hora que quisermos escrever, e da forma que o quisermos. Não digo que é um exercício simples, mas não é tão pouco complicado, e leva a um pequeno e maravilhoso resultado. Depois de vezes por fim se reescrevendo, mudando, descobrimos que nada mudou, somos descrições que se adequam aos outros, aos que convivemos e nunca ao que sentimos como verdadeiro, exatamente porque para enfrentar o grande mistério da vida temos que ser essa folha, mas apenas a folha, sem palavras, sem descrições, um reflexo maravilhosamente perfeito do nada, de ninguém, de nenhuma das descrições que o sistema criou para dizer que temos escolhas, porque o sistema não nos mostra que podemos escolher não termos descrição, sermos livres do inventário, livres do eu, para só assim conhecer o nós, o tudo, o infinito.

Comentários

  1. Caro Vento que Sussurra,

    Tenho seguido conforme obtenho esclarecimento dos ensinamentos dos Naguais. Mas algo que ainda não compreendo é o conceito de "Ser inacessível" conforme Don Juan tenta explicar ao Castaneda em "Viagem a Ixtlan". Gostaria que fizesse se possível um post sobre esse assunto colocando seu ponto de vista. Grato

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  2. Ok caro anonimo, em breve postarei algo sobre o tema, refletirei primeiramente sobre ele, para isso estamos aqui, para uma troca de conhecimentos, o que eu puder adicionar ao que já tem o farei.

    Intento

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