Os cernes abstratos, o mapa para a liberdade total




“...depois que o espírito se manifestou àquele homem, sobre o quela conversamos, e não obteve resposta, o espírito armou uma armadilha para o homem. Era um subterfúgio final, não porque o homem fosse especial, mas porque a incompreensível cadeia de eventos do espírito tornou aquele homem disponível no exato momento que o espírito bateu a porta.”
“... o que for que o espírito revelou àquele homem, não fez sentido para ele. Com efeito ia de encontro a tudo que o homem sabia, tudo que ele era. O homem, naturalmente, recusou-se de imediato, e não em termos duvidosos, a ter qualquer coisa a ver com o espírito. Não ia se deixar cair por tal rematado absurdo. Ele não acreditava.”
(O poder do Silêncio, Castaneda, p. 62,63)

Decidi começar esse texto com um dos assuntos que mais me fascina na obra de Castaneda, quais sejam os cernes abstratos. São apresentados na obra do autor em uma certa fase de seu aprendizado, os cernes abstratos, compostos por três conjuntos de seis histórias sobre os feiticeiros do passado, de tempos imemoriáveis, quando foram abordados, tocados pelo espírito, no que foi possivelmente, na linhagem do Novo Nagual o início do caminho do guerreiro na Terra e de toda a tradição que em parte foi transmitida ao mundo por ele.

No livro “O poder do Silêncio”, o Nagual aborda em seu decurso os seis primeiros cernes do conjunto, deixando subentendido o cerne inicial, ou o cerne de número zero. Como eu havia dito, todo o conhecimento mágico revelado que temos hoje em nossas mãos podem ser vistos como um mapa, se analisarmos esse simples conjunto dos cernes, que hoje descubro ser a essência do conhecimento mágico de Castaneda. Obviamente todo o conjunto da obra mostra nuances incríveis do aprendizado, de conhecimentos e de técnicas, contudo, se for seguido, vivido e sentido apenas o conjunto dos sete cernes iniciais, acredito que qualquer um poderia adentrar profundamente no caminho para a liberdade, o caminho do guerreiro vidente. Falo de tal aspecto, pois os cernes levam o caminhante a buscar e se conectar com tudo mais, com a essência de tudo, com a voz do silêncio que guarda em si o conhecimento de tudo que existe. Existe uma parte divina, uma parte da fonte que reside dentro de cada coisa no universo, orgânica ou inorgânica, essa parte divina conecta tudo e todos, em todo o tempo e espaço existente, todo o conhecimento que é necessário para a jornada que nos propomos, ou para qualquer jornada reside ali, e pode ser acessado por qualquer um que tocar e for tocado pelo infinito, pelo espírito, que ascender a fagulha de seu núcleo divino.

Além disso, o que mais impressiona no relato, é a derrubada de um pensamento corrente na maioria das crenças, religiões e dogmas de hoje, que não existem escolhidos no caminho do guerreiro, não existem pessoas especiais, pois todas as pessoas são capazes de ascender e ter acesso ao espírito, os grifos que coloquei nos trechos do livro são exatamente para frisar essa parte, que torna o caminho do guerreiro mágico, palpável e um desafio incomensurável. Por ser acessível a todos o caminho do guerreiro se torna de uma dificuldade ímpar, pois cabe a cada um a missão de guiar-se rumo a liberdade total, a cada um cabe a responsabilidade de vencer ou de falhar, está nas mãos de cada um tornar-se disponível ao espírito, mostrar-se a ele e atraí-lo para que seja feito o seu despertar, e depois de desperto, continuar a caminhar. Não existem mestres, apenas companheiros de jornada, condutos para o espírito e para cadeias indecifráveis de eventos que nos guiarão rumo ao nosso destino mágico.

Bem, então falarei sobre os cernes, contudo, neste texto focalizarei inicialmente no cerne zero, brevemente passarei pelo primeiro cerne e discorrerei sobre o segundo.

O cerne zero, ou o cerne que está subentendido no livro, reside no que chamo de Caminho solitário do Guerreiro. É a parte do caminho que consiste em reunir as características necessárias para atrair o espírito, ou para acessar o espírito. Caros amigos, companheiros de caminho, quando ainda as linhagens andavam pela Terra, e não digo que ainda não existam algumas caminhando, os líderes dos grupos de guerreiros, os que detinham o conhecimento ancestral, esperavam serem guiados por um presságio para então terem consigo os seus discípulos. Eles tinham o presságio e sabiam quem deveria escolher, mas toda escolha presidia de um caminho de mão tripla. Por um lado o guerreiro interpretava os presságios, era guiado pelo espírito impecavelmente ao aprendiz, de outro o aprendiz era guiado, sem saber, para o guerreiro que serviria de conduto para o espírito, e por outro, regendo toda a orquestra o espírito preparava o edifício do conhecimento para receber o novo aprendiz. Contudo, caros amigos, os tempos mudaram, o Velho Nagual em sua infinita sabedoria, sabia interpretar precisamente os presságios, ele precisava encerrar a sua linhagem, e era extremamente necessário, como é previsível aos guerreiros da liberdade total, não levar consigo e com os seus o conhecimento milenar que estava em suas mãos. Então que ele, guiado pelo espírito (isso está nos últimos cernes), encontrou e foi encontrado por um discípulo, o novo Nagual, este que deixaria o conhecimento aberto para todos, acessível a todos que se empenhassem em buscá-lo, em abrir-se a ele, e essa é a chave no cerne zero ao qual me refiro.

O cerne zero indica que o guerreiro deve preparar-se, deve estar disponível para ele mesmo ser o conduto do espírito, já que o conhecimento está aberto e hoje o benfeitor nos é o próprio infinito. O Cerne zero é simples como todos os outros, porque ele é uma chave para um conhecimento que deve abrir-se para cada um, e não pode, infelizmente para mim, que sou fadado as palavras, ser descritos em termos de nossa sintaxe. Esse cerne é quando o homem, sentindo que existe algo mais além do que ele vê, ouve e sabe ser o mundo, começa a buscar, se questionar sobre este mundo, sobre o universo, sobre ele mesmo, e questionando-se, começa uma busca pessoal por algo indescritível, por um conhecimento além do conhecido, pelo espírito que sempre esteve a sua volta e dentro dele mesmo, então, no caminho ele se volta para uma descoberta, o abstrato, o infinito, e é nesse momento que o espírito se volta para o caminhante. Essa é a diferença, o cerne zero é o mapa para os caminhantes que beberão diretamente da fonte, destes que não terão de ter um Nagual para guiá-los no tonal, destes que são desta geração nossa. Esta é a chave, sem nos virarmos, sem nos tornarmos acessíveis ao espírito o caminho nem começa, sequer conseguiremos o privilégio de atingirmos o conhecimento de que existe um elo de conexão, que existe uma fonte de conhecimento infinito a disposição de tudo e de todos no universo.

Contudo, caros caminhantes, prosseguindo o caminho, disponibilizando-se ao espírito é que surge a caminhada tradicional relatada por Castaneda, é que surge o primeiro cerne abstrato. É neste que o espírito de manifesta pela primeira vez, vendo o caminhante voltando-se a ele, ele volta-se ao caminhante e além disso mostra-se a ele. O nome desse cerne é “As manifestações do espírito”, transcreverei ele aqui para a análise, pois a história é suficiente em si e por si mesma para o entendimento, pois como falei, cada cerne tem o poder de abrir uma porta de um conhecimento silencioso no guerreiro, e cedo ou tarde, aos que persistem no caminho, essa porta se abrirá. O cerne fala o seguinte:

A história diz que tempos atrás existiu um homem, um homem comum, sem quaisquer atributos especiais. Era, como todos os demais, um canal par ao espírito. Em virtude disso, como todos os outros, era parte do espírito, parte do abstrato. Mas não sabia disso. O mundo o mantinha tão ocupado que ele realmente não tinha nem tempo nem a inclinação para examinar o assunto.
O espírito tentou, sem sucesso, revelar a conexão entre eles. Usando uma voz interior, o espírito revelou seus segredos, mas o homem era incapaz de compreender as revelações. Naturalmente ele ouvia a voz interior, mas acreditava que fossem seus próprios sentimentos que estava sentindo e seus próprios pensamentos que estava pensando.
O espírito, para sacudí-lo de sua modorra, deu-lhe três manifestações sucessivas. O espírito cruzou cruzou fisicamente o caminho do homem da maneira mais óbvia. Mas o homem estava alheio a qualquer coisa que não fosse sua preocupação consigo mesmo. (O poder do silencio, p. 25,26)

Percebam que é impressionante a simplicidade da revelação, do primeiro cerne, e o quanto ele se aplica aos que realmente caminham, aos que se dispõe a caminhar rumo a liberdade total. Grifei alguns que considero como sendo o essencial para todos, que é a mostra, mais uma vez, de que qualquer um pode seguir o caminho do guerreiro, bastando para isso religar-se ao espírito. Lembro-me bem quando o espírito se manifestou a mim, como sinal, eu já caminhava no caminho, relutante, durante anos, ia e vinha por ele, sentia-me engolfado pelo sistema. Não permanecia ou tinha firmeza, me cerne pessoal, meu primeiro cerne poderia ser descrito da seguinte forma:

Um dia esse homem acordou e soube que estava muito doente, sua pressão arterial muito alta não permitia a ele fumar seus velhos cigarros, beber suas velhas bebidas e nem curtir as suas intermináveis noites de festa. Mal sabia ele que o espírito o estava guiando para outro rumo. Achando que sua vida tinha terminado ele vivia sob os auspícios de aparelhos de pressão, não viajava mais, não praticava exercícios, a morte o obcecou e o medo paralisou toda a sua vida. Ele então ficou preso no mundo de seu quarto, a sacudida do espírito tinha sido grande demais para ele. Ele via lugares em filmes que nunca imaginou que visitaria e na escuridão e na umidade de seu quarto ele começou a reformular a sua vida, começou a recapitular cada dia de sua existência, pois os limites do quarto era o que encerrava a sua existência. Então a sua vida começou a mudar, ele viu o que era quando criança e lembrou do mundo mágico que conhecia. Viu que os limites de seu corpo era o infinito. A todo dia ele via a morte ao seu lado e de uma fixação a morte virou uma conselheira, o espírito então tinha tocado o agora doente rapaz, que depois de alguns anos recapitulando sua vida, como uma borboleta, saiu de seus quarto casulo para começar a voar nas asas da percepção.

Recapitulei, depois desse encontro que relatei, e vi que ali começou o meu despertar, durante um tempo ainda caminhei, relutando certas vezes, indo e voltando, contudo, a força dispensada pelo espírito é irresistível, esse é um caminho que não se pode voltar, não existe, pelo menos para mim, forma de esquecer o que é o espírito, da mesma forma que não há como descrevê-lo após o primeiro contato, após a percepção real do quão portentoso pode ser o elo de ligação do homem com ele., relatando o que mesmo disse o novo nagual, “a verdade completa é que o espírito se revela a todos com a mesma intensidade e consistência...”.

Agora chegamos finalmente ao segundo cerne, aquele que relatei no início do corpo do texto, que se chama “O Toque do Espírito”. Imaginem, no cerne zero, existe uma imperiosa necessidade de ação única e exclusiva por parte do caminhante, ele com sua força, suas dúvidas acena ao desconhecido esperando uma resposta. No primeiro cerne o desconhecido reponde, dá a sua manifestação e avisa ao caminhante que ele existe, que ele é acessível que ele está o vendo, fazendo com que o guerreiro comece a vê-lo, a ouvi-lo a sentí-lo. Então que sucede-se o segundo evento na vida e no caminho, que é o toque do espírito Então que o espírito começa a moldar o caminhante para torná-lo guerreiro. Assim, o espírito se manifesta e abre uma cadeia de eventos no qual o guerreiro se insere. Uma cadeia de eventos acontece e o caminhante se vê impelido a estar no centro dessa ação, os eventos, a cadeia que se desenvolve é o edifício do intento, ali, diante desses eventos o espírito manifesta o seu conhecimento ao guerreiro, o conhecimento silencioso. Nesse passo, o guerreiro então começa a disciplinar o seu elo de conexão com o espírito, tentando estar sempre prevenidos para quaisquer sucessão de eventos que esteja e seja reservada a ele. Segundo o velho Nagual, “o progresso ao longo do caminho dos feiticeiros, era em geral, um processo drástico, cujo propósito era colocar em ordem esse elo de conexão.”

É fantástico notarmos a analogia usada pelo Nagual Juan Matus, quando fala que “O edifício que o espírito exibe diante de nós é, então, uma casa de limpeza, dentro da qual encontramos tanto os procedimentos para limpar o nosso elo de conexão quanto o conhecimento silencioso que permite que o processo de limpeza tenha lugar.” É sob essa ótica que vemos que o caminho do guerreiro se faz a medida que o espírito indica em que direção caminhar e a compreensão do caminho é dada a medida que temos acesso a esse conhecimento silencioso que nos proporciona a limpeza de nosso elo de conexão.

Pude notar, que uma das consequências do caminho, a medida que estabeleço a limpeza de meu canal, foi a percepção de outros caminhantes por mim, a medida que eu era percebido por eles. Essa cadeia de eventos aconteceu e aflorou, e ainda aflora uma cadeia ininterrupta de eventos e conhecimentos que circula entre mim e esses guerreiros de forma a edificar-se um real conhecimento. É como se eu tivesse acesso a alguns fragmentos do conhecimento, e a medida que eu os coletava, o espírito me dava a indicação de outros, e outras pessoas, e juntos começamos a formar um quadro que tende  se completar de um mapa que nos guiará a tão almejada liberdade total. Além disso, revelações, histórias antigas da Terra, dos nossos ancestrais, de linhagens de guerreiros, e uma infindável série de conhecimentos se abre para mim, a medida que penetro mais profundamente no edifício de conhecimento montado pelo intento, em breve colocarei mais delas aqui neste espaço, porque até mesmo este espaço, e o que coloco aqui, são obviamente guiados por um desejo profundo que tenho de compartilhar o conhecimento, mesmo sendo o Tonal tão limitado para a descrição do nagual, essa é a forma para qual fui guiado de compartilhar o que recebo.

Finalizo então com mais um trecho do espetacular conhecimento deixado pelo novo nagual:

É apenas quando a nossas vidas quase se encontram por terminar que essa preocupação ancestral com o destino assume um caráter diferente. Começa a fazer-nos ver através da névoa das ocupações diárias. Infelizmente, esse despertar sempre vem de mãos dadas com a perda de energia causada pelo envelhecimento, quando não temos mais força para transformar nossa preocupação em descoberta pragmática e positiva. Nesse ponto, tudo que permanece é uma angústia amorfa e penetrante, um desejo por algo indescritível e uma simples raiva por haver perdido tudo. (O poder do Silêncio, Castaneda)

O espírito me deu uma chance, caros amigos, uma chance de caminhar, uma mínima chance de ser livre, e compartilho essa chance com vocês, nos pequenos lapsos que tenho de conhecimento, nas pequenas fagulhas proporcionadas pelo espírito, não posso me furtar de compartilha-las com vocês, não posso deixar de entender, que essa forma que tenho, a escrita, me abre portas para o conhecimento e ainda mantém o intento do Novo Nagual aceso, o intento de compartilhar o conhecimento e de tentar, de intentar uma transformação global, a liberdade total de nossa raça.

Intento guerreiros!

Comentários

  1. Hermano Vento, companheiro..... Gratidão ao "Grande Mistério" por isto também! Gaivota 31/03/14 19h30

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Obrigado por partilhar do intento da transformação global

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