Capítulo 4 - A Recapitulação




O terceiro tema de profundo interesse para os feiticeiros do México antigo era a recapitulação. Aqueles feiticeiros acreditavam que, assim como os passes mágicos, a recapitulação é alicerce para a edificação do Conhecimento Silencioso. Para eles, a recapitulação é o ato de reviver experiências passadas, necessário para atingir as metas transcendentais dos guerreiros. A primeira era um esforço coerente com sua visão geral do universo, da vida e da consciência, a outra era uma meta extremamente prática de adquirir fluidez perceptiva.
Sua visão geral do universo, da vida e da consciência, era que existe uma força indescritível, que eles chamam, metaforicamente, de Águia. Eles entendiam que essa era a força que fornece energia a todos os seres vivos, desde os vírus até os homens. Eles acreditavam que a águia empresta a consciência no ato da concepção, e que esta é incrementada pelas experiências da vida, até que essa força exija que essa consciência retorne a ela. De acordo com o entendimento dos feiticeiros, a morte de todos os seres vivos acontece porque são forçadas a regressar a suas consciências que lhes fora empresta. Então a consciência aumentada volta ao sua fonte.
Don Juan falou que não havia maneiras  de explicar tal coisa com a nossa forma linear de pensar, já que não existe uma explicação do porque a consciência é emprestada ou porque ela retorna a sua fonte, é uma fato energético, e nem todos os fatos energéticos podem ser explicados em termos de causa e efeito, com algum propósito que possa ser, a priori, determinado.
Os feiticeiros do México antigo acreditavam que recapitular significa entregar a esta força, a Águia, o que ela está buscando, ou seja, nossas experiências de vida, mas com um certo grau de controle que permite aos feiticeiros separar a consciência da vida. Eles asseguravam que a consciência e a vida não estão entrelaçadas de forma inseparável, mas apenas incidentalmente. Afirmavam que a Águia não quer a nossa vida, quer na verdade as nossas experiências vividas. Muito embora os seres humanos devessem perder apenas a força de suas experiências, a falta de disciplina não lhes permite separar a sua força vital da força de suas vivências. A recapitulação pe o procedimento através do qual os feiticeiros entregam a águia algo no lugar de suas vidas. Eles entregam a águia suas experiências ao revivê-las, mantendo assim a sua força vital.
As conjecturas perceptivas dos feiticeiros parecem sem sentido se examinadas em termos dos conceitos lineares de nosso mundo. O homem ocidental abandonou qualquer tentativa de travar um discurso filosófico sério baseado nas declarações feitas pelos feiticeiros do Novo mundo. Por exemplo, a idéia da recapitulação nos parece similar as idéias da psicanálise.  Qualquer erudito que esbarre com essa idéia, poderia pensar que a recapitulação é um procedimento psicológico, um tipo de técnica de auto-ajuda. De acordo com Don juan Matus, o homem  sempre perde por omissão. Ele acreditava que existem formas alternativas de nos relacionarmos com o universo, a vida, a consciência e a percepção, e a forma atual de relacionamento é apenas uma dessas múltiplas opções.
Para os praticantes da feitiçaria, o significado da recapitulação, é entregar para a força incompreensível, a águia, exatamente o que ela quer, as suas experiências de vida, ou seja, a consciência que foi incrementada através dessas experiências. Don Juan não conseguia me explicar  este fenômeno nos termos de nossa lógica comum, ou nos termos de nossa necessidade de se explicar tudo em termos de causas e consequências. Dizia que tudo isso pertence ao reino prático, e que tudo que podemos aspirar é a realização dessa façanha sem uma explicação. Também dizia que haviam centenas de feiticeiros que atingiram a realização dessa façanha de conservar as suas vidas depois de entregarem Águia a força de suas experiências. Para Don Juan isso significava que esses feiticeiros não morreram da forma usual como entendemos a morte, mas a transcendeu mantendo a sua força vital desaparecendo da face da Terra, embarcando em uma viajem definitiva da percepção.
Os feiticeiros acreditam que quando a morte acontece desta forma, todo o nosso ser se converte em energia pura, de uma qualidade especial que mantém a marca de nossa individualidade. Tratou de explicar isso de forma metafórica dizendo que, durante todo o curso de nossas vidas, somos compostos por um grande número de “nações e reinos individuais.” Disse que temos o reino dos pulmões, o reino do coração, o reino do estômago, o reino dos rins, e tantos outros, e que a cada um desses reinos e nações trabalham, algumas vezes, de forma independente de todo resto, mas que, no momento da morte, todos se unem em uma só entidade. Ele chamou esse estado de liberdade total, e dizia que um ser humano livre da socialização e do domínio da sintaxe era transformado assim em uma porção de energia pura e unificada, desaparecendo, evaporando, virando fumaça no desconhecido, no infinito, transformando-se em um ser inorgânico, um ser que tem consciência e não tem um corpo.
Eu perguntei a ele se isso era a imortalidade. Ele me disse que isso não era, de nenhuma maneira, a imortalidade, era unicamente a entrada em um processo evolutivo, lançando mão do único meio de evolução que o homem possui, a consciência. Os feiticeiros estavam convencidos que não existem mais para onde evoluir biologicamente, consideraram então que o único meio do homem evoluir é através de sua consciência. Para os feiticeiros, transformar-se em seres inorgânicos era atingir a evolução, Don Juan disse, para eles isso significa que eles adquirem um novo tipo de consciência incompreensível que dura, de fato, milhões de anos, mas que um dia deverá retornar ao seu doador, a Águia.
Perguntei a Don juan se os seres inorgânicos, que de acordo com os feiticeiros habitam o nosso mundo gêmeo, eram seres evoluídos que foram homens alguma vez em sua existência. Disse que são seres intrinsicamente inorgânicos da mesma forma que nós somos intrinsicamente orgânicos, são seres cuja consciência pode evoluir como a nossa, e sem dúvida o fazem, mas que ele não tinha consciência de como isso acontecia. O que se sabia, no entanto, é que um ser humano que evolui é um ser inorgânico de um tipo especial.
Don Juan me deu uma série de descrições dessa evolução, que sempre considerei como metáforas poéticas. Elegi então a que mais gostei, a liberdade total. Eu sempre pensava que o ser humano que entrasse nesse estágio deveria ser o mais valoroso, o mais imaginativo que houvesse. Don Juan me falou que eu não estava apenas imaginando, que para entrar neste estágio o ser humano deve apelar para o seu lado sublime, que segundo ele disse, todos os homens possuem mas nunca pensam em usar.
Don juan explicou que o segundo aspecto da recapitulação era adquirir fluidez. Me disse que a racionalização dos feiticeiros tinha a ver com um dos assuntos mais intrigantes da feitiçaria, o ponto de aglutinação, um ponto luminoso do tamanho de uma bola de tênis que pode ser percebida pelos feiticeiros que veem o fluxo de energia do universo diretamente. Como já foi dito anteriormente, um ser humano, visto pelos olhos de um vidente, tem a aparência de uma esfera luminosa, então os videntes podem ver um ponto de brilho mais intenso na parte anterior desse ovo de luz. Eles o chamam de ponto de aglutinação exatamente por o verem como um ponto em que convergem filamentos luminosos de energia do interior do ovo de luz. Essa confluência de filamentos que dá ao ponto de aglutinação o seu grande brilho.
O ponto de aglutinação permite ao ser humano perceber a energia do universo convertida em dados sensoriais, que o ponto de aglutinação interpreta como o mundo cotidiano, esta interpretação se realiza em termos da socialização e dos potenciais humanos.
Don Juan disse que recapitular era reviver todas, ou quase todas as experiências que a pessoa teve e que ao fazer isso, o ponto de aglutinação se desloca, um pouco ou significativamente, impulsionado pela força da memória para ocupar a posição em que se encontrava quando o evento recapitulado acontecia. O ato de se deslocar continuamente o ponto de aglutinação do ponto fixado para os momentos recapitulados dá ao praticante a fluidez necessitaria para suportar as circunstâncias insólitas de suas viagens ao infinito, viagens que não fazem parte de todo da cognição normal do praticante.
Nos tempos antigos, a a recapitulação era como um procedimento formal, os praticantes recordavam de cada pessoa que tinham conhecido e cada experiência de que tivessem feito parte. Don Juan me sugeriu que escrevesse uma lista de todas as pessoas que eu tivesse conhecido em minha vida, como um dispositivo mnemônico. Uma vez que eu tinha a lista escrita, prosseguiu a descrição de como utilizá-la. Me disse para pegar a primeira pessoa na lista, que era ordenada de agora ao passado, e recriar em minha mente a última interação com a pessoa. Chamou essa ação de fixar os eventos que serão recapitulados. Don Juan dizia que recontar os eventos em detalhes era a melhor maneira de afiar a nossa capacidade de recordar. Disse que para realizar essa narração a pessoa necessita incorporar todos os detalhes físicos do ambiente, tal como os arredores do lugar onde o evento aconteceu. Uma vez que o evento esteja totalmente relembrado, a pessoa deve entrar nesse lugar como se ela realmente estivesse ali e prestar especial atenção a qualquer configuração física que seja relevante. Por exemplo, se o evento aconteceu em uma oficina, a pessoa deve lembrar-se do piso, das portas, das paredes, dos quadros, das janelas, mesas, dos objetos encima das mesas, tudo aquilo que talvez tenha sido visto rapidamente e logo depois esquecido.
Don Juan me assegurou que, como um procedimento formal, a recapitulação deve iniciar-se como a narração dos eventos mais recentes. Desta forma a experiência acontece com primazia, pois a pessoa pode recordar facilmente de algo que acaba de acontecer com grande precisão. Assegurava que a pessoa é capaz de armazenar informações detalhadas que mesmo ela não é consciente, e que esse tipo de informação é o que interessa a Águia.
Para recapitular o evento em si, é necessário que se respire profundamente movendo a cabeça para esquerda e direita tantas vezes quanto for necessário, até recordar de todos os detalhes possíveis. Don Juan disse que os feiticeiros se referiam ao método como o ato de inalar todos os sentimentos que a pessoa sentiu no evento que está recapitulando, e exalar todos os sentimentos indesejáveis que estiveram envolvidos com ele.
Os feiticeiros acreditam que o mistério da recapitulação está no ato de inalar e exalar. Sendo a respiração uma função que sustenta a vida, os feiticeiros acreditam que também podemos entregar a força que nos emprestá a consciência este facsímile das experiências de nossa vida com a nossa respiração. Quando eu pressionei Don Juan para me dar uma explicação racional sobre o assunto, ele me disse que certas coisas como a recapitulação não podem ser explicadas, só podem ser experimentadas. Os feiticeiros se atém a ação. A explicação nestes casos se dissipariam em esforços inúteis. Sua explicação era como todas que se relacionavam com o seu ensinamento, um convite a ação.
A lista que fazemos com os nomes das pessoas funciona como um dispositivo mnemônico que propulsiona a memória a fazer uma viajem inconcebível. A lógica dos feiticeiros é que recordar os eventos que acorreram mais recentemente prepara o caminho para que a pessoa recorde eventos mais antigos, com a mesma claridade e eficiência.
Os feiticeiros consideravam que fazer uma recapitulação como esta é como viver as experiências vividas, e o que se pode esperar da recapitulação é uma força extraordinária, um ímpeto excepcional que agita e faz regressar novamente, aos nosso centros energéticos, toda a energia que havia se dispersado deles ficando acumulada na borda do ser luminoso que somos nós. Falam que essa redistribuição de energia resultado da recapitulação nos permite ganhar fluidez a medida que entregamos a Águia o que ela quer.
Em um nível mais mundano, a recapitulação nos permite ver o quão é repetitiva a nossa vida. A recapitulação nos convence, sem deixar dúvidas, de que estamos a mercê de forças que, a primeira vista parecem ser extremamente normais, mas que no fim, são absurdas. Os feiticeiros afirmas que uma verdadeira mudança de comportamento só pode ser conseguido pela recapitulação, sendo ela o único veículo que pode dar a consciência a liberdade que as exigências silenciosas que a socialização impõe, uma imposição que não pode ser percebida quando estamos no automático. Está é a razão pela qual os feiticeiro se referem a recapitulação como “a visão da ponte”.
Chegar ao fim da lista leva um grande tempo, já que está intimamente relacionada com os eventos que aconteceram. Algumas vezes, por simples osmose, existem pessoas que se relacionam com eventos impessoais em que nenhuma pessoa participou mas que aconteceu no período que havia conhecido a pessoa que se está recapitulando. Nestes casos a pessoa deve recapitular o evento em si.
O que os feiticeiros procuram ávidamente através da recapitulação é obter a memória de suas interações já que através destas, se dão conta dos profundos efeitos da socialização a qual tentam superar de todas as formas possíveis.

Comentários

  1. Buenos dias, Irmâo Vento.
    En mi camino solitário, constatei que de los que leram "A Erva do Diabo", muchos pocos deram continuidad al Ensinamento. Quedaron só por aí. D.Juan,una vez dije,algo mas ou menos assi: que no estaba en busca de aprendizes, se ele empezasse a hablar sobre el Camino, muitos leh jograrima pedras, pocos acreditariam en sus palabras, muito pocos tentariam seguir los Ensinamentos y muchos menos ainda teriam la persistencia necessaria para dar continuidad ao trabajo y para adentrar en el Camino del Guerreros es necessário ter tripas resistentes y culhões de aço. (mi desculpem las mujeres, hi,hi,hi). Ya passei por tantas provacciones que apesar de tudo e de miu poder personal até yo mismo pensei en desistir. Pero La Grande Aquila en todas las vezes se pos em mi camino demonstrando mais y mais que yo estaba no camino certo y assi prossigo. Paro en la beira del camino e arquejante vejo novos vislumbres y acreditando reafirmo mis propositos perante el Espiritu.
    Abraços, Naian.
    PS: Ontem a las doze, sonhei que demostrava alguns Passos que pareciam en muito con las Artes Marciais, mui potentes.
    * * *

    ResponderExcluir
  2. Naian, o caminho é estreito, existem muitas dificuldades, e a principal que temos é a dificuldade em sermos responsáveis pela propria vida. Mas acredito nesse caminho a cada dia e a cada pedra que me faz tropeçar, a dor de cair e a felicidade de levantar me mostra o quão real é este nosso caminho.
    SObre os passes mágicos, olha só até fiquei arrepiado. Os passes que me foram dados realmente se parecem muito com passes de artes marciais, e ontem em meus sonhos eu os pratiquei.
    Estamos juntos no intento amigo.

    ResponderExcluir
  3. Vento, ventania, ahora quien ficou arrepiado fui yo!!! La descarga energética percorreu la espiña! Tengo certeza que estamos haciendo algo além e que no recuerdaremos todas nuestras interacciones en todo. solo después que la poeira assentar. Hace poco tiempo y ya demonstramos un entrosamento verdadeiramente sui generis de Guerreros.
    Peço-lhe que fale mais un poco. Me sinto mui energizado en nuestros diálogos. Nuestro cmabio energético es mui salutar.
    Naian

    ResponderExcluir
  4. Nossos corpos energéticos estão empreendendo uma magnífica interação, e a maior parte dela não recordamos em nossa atenção usual. Fiquemos atentos amigo, estamos sendo guiados nos caminhos dos guerreiros, muita coisa está sendo feita e realizada.
    Esses passes foram um sinal para mim, quando você me indicou o livro púrpura, o nagual Juan Cortez, o zelador do conhecimento de uma linhagem parecida com a do Nagual Juan Matus me indicou eles para que eu tivesse força para me aprofundar na arte do sonhar, e então que agora você me narra este sonho como um presságio dos novos rumos que temos que tomar.
    ALgo está por acontecer conosco, este novo grupo se formando pode ser a chave para o nosso empreendimento rumo a liberdade.

    Intento Naian.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Obrigado por partilhar do intento da transformação global

As mais lidas (se gostas de multidão)

A mariposa, a morte, e o espírito

O fim da linhagem de Don juan, a prisão de Castaneda e o legado das bruxas

As dúvidas na caminhada: entre ser tudo e não ser nada